O climão de “RoboCop”: Padilha mentiu no Roda Viva?

Em fevereiro desse ano, o Roda Viva realizou uma entrevista extensa e aprofundada com o cineasta brasileiro José Padilha, que dirigiu “RoboCop”, “filme brasileiro de US$ 130 milhões”, de acordo com ele.

Pude acompanhar boa parte do papo na época, graças à transmissão ao vivo disponibilizada pela TV Cultura, e gostei bastante do resultado, mesmo perante uma bancada não tão preparada e com um péssimo “especialista de cinema”. Inclusive, o programa é extremamente recomendado e está disponível, em 4 partes, no canal do Roda Viva. Mas nem tudo que foi dito ali pode ser considerado verdade absoluta.

No primeiro bloco, por volta de 15m48s, alguém pergunta sobre o “clima no set”, partindo daquela premissa deslumbrada de quem nunca pisou num estúdio norte-americano. Em vez de falar sobre o mito das entourages dos atores, José Padilha optou por explicar a importância do ensaio com o elenco e da preparação antes das filmagens.

“Depois de aborrecer muito o estúdio, consegui ensaiar [assim como diz ter feito em Tropa de Elite]”, diz Padilha ao programa, também afirmando que ensaios são raros nos Estados Unidos por causa do custo; algo já questionável. “Estávamos numa sala, com sofás, algumas mesas, o Gary Oldman, o Joel Kinnaman e todo mundo. O roteirista sentava ao lado, o Josh Zetuman, e a gente ia ensaiando e mudando a cena. Isso foi criando uma intimidade e a gente foi entendendo a história cada vez mais”.

Como consequência desses ensaios, Padilha diz ter sido capaz de filmar “Robocop” como um “filme brasileiro”, no qual cenas são reescritas no set, diálogos alterados e novas cenas filmadas no improviso. Mas nem todo mundo do elenco concorda com essa visão e a resposta ao Roda Viva é colocada em xeque.

Jay Baruchel

Duas semanas depois, tive a oportunidade de entrevistar o ator Jay Baruchel, que interpreta um gerente de marketing em “RoboCop”. Ele faz a voz de Soluço, o protagonista do ótimo “Como Treinar Seu Dragão” e é fã declarado de Padilha. “Quando soube que Padilha estava filmando no Canadá, pertinho da minha casa, fui com tudo atrás da produção e queria participar”, diz Baruchel, em entrevista exclusiva ao B9. “Assisti aos dois Tropa de Elite no Netflix e gostei demais do trabalho dele”.

Vendo um ator tão empolgado, e dedicado à direção – que será o futuro de Baruchel no cinema – acabei perguntando sobre os ensaios. Curiosamente, há alguns anos, Gary Oldman havia reclamado sobre “diretores que ensaiam na câmera” para a reportagem do B9. Logo, Padilha enaltecendo o trabalho, Oldman concordando, uma resposta muito legal estava por vir, não? Mas algo inesperado aconteceu! Vou colocar o diálogo na íntegra para expor:

Fábio Barreto: – Gary Oldman havia reclamado de diretores que ensaiam na tela e José Padilha falou bastante sobre a importância do ensaio outro dia. Como foi…?

Jay Baruchel: – Ele falou isso? (gargalhadas absurdamente altas)

FB: – Sim, falou.

JB: – Okay. (com cara de “então tá, então!”)

FB: – Então não rolaram ensaios?

JB: – Não, pois quando sentamos para a primeira, e única, “table read” [quando o elenco lê o roteiro junto], ele ficou repetindo “Não fazemos isso no Brasil”. Ele me disse isso várias vezes, que ninguém ensaia no Brasil. E ele repetia “Isso é fantástico!” [imitando Padilha em deslumbre], então é estranho vê-lo falando sobre a importância dos ensaios.

Bizarro, não? Ele pode ter confundido os termos? Table read é um elemento inicial na preparação e pode até ser considerado ensaio, mas o ensaio propriamente dito acontece quando a cena é encenada, com movimentação, num cenário similar ou espaço aberto. Muitos diretores ensaiam antes e durante a produção, pouco antes da cena ser rodada, já com iluminação sendo definida e movimentos de câmera.

De qualquer forma, a contradição soou estranha e me fez questionar outras explicações dadas por Padilha durante o Roda Viva, afinal, ninguém ali estava pronto a contrapor suas explicações, pois, infelizmente, o painel tinha caráter mais curioso do que investigativo, especialmente por se tratar de um cineasta tão engajado e informado sobre violência, política e, claro, cinema.

A reportagem do B9 procurou José Padilha para comentários, ou alguma explicação sobre a contradição, mas ele não estava disponível para entrevistas sob alegação de que “o período de divulgação de Robocop acabou e ele não fala mais sobre o assunto”.

“RoboCop”: Padilha Ex Machina

As ideias de gente como Gene Roddenberry e Arthur C. Clarke, por exemplo, sempre fizeram a ficção científica contemporânea olhar para a frente e para o futuro. Ambos criaram mundos tão críveis quanto distantes, um pouco conectados por uma aparente fé na evolução da Humanidade. Até agora, sobram argumentos para contrapor esses visionários.

Violência urbana, pequenas – e constantes – guerras em áreas de grande miséria, corrupção e muita incerteza na política internacional com Coréia do Norte e Irã ameaçando desestabilizar o cenário. Logo, a ficção começou a olhar o amanhã com cinismo, aquela sombra soturna pairou sobre heróis e os futuros deixaram de ser promissores, quase ecoando a onda do “cinema contra as corporações” da década de 1980 ou vendo as trevas em qualquer sombra, no “efeito Nolan”.

E é daí que surge o argumento para a estreia de mais um diretor brasileiro em Hollywood: “RoboCop”, dirigido por José Padilha e fotografado por Lula Carvalho.

Com uma carreira brasileira marcada pela pesada crítica social, a ausência total de fé no sistema de segurança e no claro desdém pelo trabalho da imprensa, Padilha assumiu a missão de dirigir um remake do clássico de Paul Verhoeven. O processo foi abertamente atribulado com diversas alterações de data e muitas discussões sobre os rumos da história e, mesmo com tudo isso, saiu.

José Padilha no set

José Padilha no set

RoboCop

Antes de ver o filme, o instinto dizia ser impossível dissociar uma obra da outra, ou seja, comparar o original com o novo. Depois, isso cai por terra. Alguns elementos continuam presentes, mas, felizmente, o novo ?“RoboCop” se sustenta com as próprias pernas e podemos olhá-lo como obra única. Mas isso não quer dizer que o diretor conseguiu, necessariamente, transferir seu estilo provocador para a tela nessa mistura de ficção científica, filme de ação e drama familiar.

Gene Roddenberry idealizou um mundo no qual o humano deixasse de ser violento. Padilha se alimenta do oposto, vendo uma sociedade derivada diretamente dos efeitos dessa agressividade. Ele parece buscar por uma utopia inexistente, tal como Roddenberry. Mas, ao ponto que o criador de “Jornada nas Estrelas” viu esse homem “evoluído”, Padilha tem como maior “devaneio” em “RoboCop” a cena de abertura, na qual veículos de combate não-tripulados (drones) e soldados robóticos norte-americanos patrulham e pacificam as ruas de Teerã, capital do Irã, um dos maiores opositores aos Estados Unidos (esse será o único spoiler do filme, prometo).

O cenário é fantasioso ao extremo, quase um mundo paralelo no qual décadas de desavenças foram superadas sem conflito (o roteiro deixa claro que a Guerra do Afeganistão foi a última travada ao custo de “vidas americanas”) em apenas 14 anos. Mas serve para passar um recado direto: Padilha quer criticar o uso atual dos drones.

O tema é justo, atual e relevante. A administração de Barack Obama tem ampliado o uso dos veículos para eliminar ameaças fora dos Estados Unidos (é proibido o uso desse recurso em território americano e contra cidadãos onde quer que estejam) e as críticas acontecem com frequência. Padilha também fala a respeito – mas não mostra – de uma sociedade violenta, repleta de crimes e sofrendo por isso. A tese central é: usar os drones ou não.

RoboCop

Elementos do original continuam presentes, mas, felizmente, o novo ?“RoboCop” se sustenta com as próprias pernas e podemos olhá-lo como obra única.

Para debater o tema, ele utiliza o âncora de TV da extrema direita, o empresário capitalista até o último fio de cabelo, a corrupção na polícia, a família destruída, o sucesso em outros “mercados” e a repetição do discurso dos políticos. Muito bem. Tudo está lá. Mas a superficialidade reina. Não há novidade, não há nenhum novo argumento para a discussão. Não há sinal do impacto da mensagem de “Tropa de Elite” – quando o Capitão Nascimento fala de fazer uma escolha… e opta por “ir para a guerra”, ele faz mais diferença do que toda a discussão em “RoboCop” – e o que sobra é uma chuva no molhado. Algo muito aquém da proposta inicial.

O tema não permeia o filme como uma presença sombria e problemática, ele desaparece quando Jackson sai de cena e só volta se jogado na cara do espectador. O resultado é artificial, como se apenas o elemento radical importasse. A América, que tanto é mencionada, não tem voz própria, se tornando uma marionete da mídia, numa crítica descabida se contraposta às mídias sociais. O argumento soa didático, feito por quem acabou de ler as primeiras linhas sobre o tema, quase professoral (assim como Padilha fez com as ‘cenas de professor’ em “Tropa de Elite”), portanto, desinteressante para quem vive essa realidade.

E existe mais um agravante: Padilha gosta de vilanizar o sistema (com méritos!), mas dessa vez faltou um vilão digno. Falta uma ameaça. Falta algo maior em jogo. Esse elemento é extremamente problemático para a composição de um filme impactante e socialmente relevante, pois se o inimigo é invisível e “maior que tudo”, ele se torna praticamente imbatível e invalida a jornada do herói. Tira força de todos os argumentos e, de certa forma, justifica o desempenho mediano nas bilheterias norte-americanas.

RoboCop

Ao criticar o papel da imprensa, Padilha acaba utilizando um recurso a là “Tropas Estelares”, com Samuel L. Jackson dando um show tecnológico e defendendo seus ideais extremos. A alusão clara a Rush Limbaugh está lá, entretanto, em alguns momentos, ele é muito mais Datena do que sua contrapartida republicana.

Padilha gosta de vilanizar o sistema, mas dessa vez faltou um vilão digno. Falta uma ameaça. Falta algo maior em jogo.

A tentativa de porrada é para todo mundo, não exclusiva dos americanos. Assim como a escorregada. O debate nunca decola e a denúncia nunca acontece. E daí que o apresentador é caricato e exagerado? Isso sempre existiu. O que ele fala e faz importa e, nesse caso, o roteiro falha ao não enxergar essa necessidade, de ir além, de forçar a barra, de apelar.

Muito dessa culpa está tanto na ausência do vilão, que personificaria ou causaria alguns desses problemas, quanto no fato de Padilha optar por não mostrar essa sociedade norte-americana varrida pela criminalidade. Não vemos as ruas de Detroit destruídas, famílias acuadas, gente com medo. Nada.

Na única prisão que “RoboCop” faz, ele está na frente da delegacia, em meio a um evento público. Onde está a realidade? Quais mazelas afetam esse futuro? Como se alinhar à crítica de que “ninguém quer ser RoboCop, nem mesmo Alex Murphy”, de acordo com o diretor, se não vemos a necessidade dele propriamente dita? É o mesmo que acreditar na guerra de “1984” sem questionar, coisa impossível com a noção moderna de comunicação.

Paul Verhoeven no set do RoboCop original

Paul Verhoeven no set do RoboCop original

RoboCop

Falta essa conexão da crítica com sua relevância, com a perda de Murphy, que foi desumanizado ao se tornar um ciborgue tecnológico from hell. E isso fecha a sequência responsável pela atenuação do filme: como sentir pela família? Mesmo repletos de decisões acertadas, e um belo trabalho de Abbie Cornish, a família sofre da mesma superficialidade dos pontos críticos. É um problema estrutural, enfatizado por um primeiro ato extremamente longo e focado na reconstrução de Murphy.

Padilha pode ter falhado em dar a carga crítica ao filme, isso é fato. Porém, ele não falhou ao entreter. Como obra de ação, funciona bem. Como filme de ficção científica, fez bom uso dos efeitos, teve bom gosto na construção da tecnologia, nos efeitos que ela causa no mundo – e se distancia, e muito, do fraco “Elysium”, de Neil Bloomkamp – e na criação do universo bélico em torno do RoboCop. Como filme policial, nem tanto, pois a corrupção é mais um dos temas com execução duvidosa e desfecho simplório. O filme é divertido, tem boas piadas e, como mencionado anteriormente, se sustenta sem problemas.

Logo, é um êxito comercial, com um visual digno de Hollywood – feito pela visão de Lula Carvalho, o mesmo diretor de fotografia dos dois “Tropas de Elite” –, sem escorregadas no som, com trilha sonora também brasileira e um elenco de nome trabalhando bem. Gary Oldman é fantástico, como sempre; embora também tente assimilar a carga de vilão sem de fato o ser. Joel Kinnaman, o herói, tem uma interpretação neutra, sem muita variação ou profundidade suficiente nas cenas mais dramáticas.

A refilmagem era necessária. O “RoboCop” original é um dos filmes mais datados de seu período e, se me permito aqui uma única comparação, Padilha dirigiu muito melhor que Verhoeven. E isso, em si, já é uma boa realização. Nota altíssima para a nova versão da “morte” de Alex Murphy. A atualização da temática fez bem ao personagem, assim como a tecnologia e um elemento que o filme de Padilha transborda: humanidade x artificial.

Enquanto o primeiro RoboCop lutava contra a sua programação, sem nenhuma perspectiva de voltar a ter uma família ou uma vida normal, a versão atual está no outro extremo, fazendo de tudo para conciliar a nova realidade com o lado emocional. “Eu, Robô” é muito mais efetivo nesse quesito, porém. Ou mesmo “O Homem Bicentenário”. Duas obras de Asimov. Dois tratados sobre Humanidade, pois escolheram um tema e mergulharam nele.

“RoboCop” conseguiu fugir do estigma de ser uma nova versão de “Tropa de Elite”, e se distanciou de forma positiva do original.

A história, e a realidade desse 2028, permitem que vejamos essa esperança no horizonte da família Murphy, embora de forma – novamente – muito sutil. E esse é o maior problema desse filme, o roteiro do estreante Joshua Zetumer (numa derrapada gigantesca da Sony Pictures).

Não havia espaço para sutileza nessa história, Padilha é o diretor que sabe dar a martelada como ninguém. Então, por que insistir nessa vasta gama de temas e retirar a profundidade de todos eles? É como se houvesse o desejo de que a história fosse o mais neutra possível para evitar uma tragédia, mas o resultado pode ser um filme que caia rapidamente no esquecimento do público norte-americano. Padilha deveria ter notado isso, mas ele teve suas guerras a travar e é possível entender, e acreditar, que poderia ter sido muito pior.

“RoboCop” conseguiu fugir do estigma de ser uma nova versão de “Tropa de Elite”, se distanciou de forma positiva do original e abriu espaço para uma nova série, muito mais pé no chão e – por conta dos aprendizados do passado – melhor que a original. Mas poderia ter sido melhor, muito melhor.

Brainstorm9Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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