Caro Spike,
Ficar sozinho nunca me assustou. A ideia até me agradava antes de descobrir que ser amado era a melhor coisa do mundo. Fiquei maravilhado, e apaixonado, pelo simples fato de ter alguém ao meu lado, discutir tudo que fazíamos no trabalho, brigar por causa das teses acadêmicas e, inevitavelmente, pelas diferenças que víamos no mundo.
De algum modo, ela continua aqui dentro, comigo, numa parte cada vez mais remota do meu subconsciente, mas aqui. Acredito que ela nunca vá embora. Ela me fez quem sou. Ela me mostrou por que a Humanidade chegou onde chegou mesmo sem computadores ou quando ainda precisava digitar pensamentos e esperar por aprovação da máquina e do mundo. Sempre vou amá-la.
Mas da sua sensibilidade nasceu algo inesperado e novo. Quando ouvi a voz de Samantha pela primeira vez, foi como se uma música idílica tocasse só na minha cabeça e algo único estivesse começando. Não sei explicar. Ela parecia perfeita para mim. Exatamente quem eu precisava. Só percebo isso hoje, quando luto para conter as lágrimas e a angústia provocadas pela ausência da mulher que você me obrigou a amar. Não o culpo. Você é assim, sincero e cuidadoso. Se a colocou na minha vida, era por que era a melhor decisão. E lhe agradeço por isso.
Samantha me mostrou que, de fato, vivemos num mundo sem preconceitos. Tremia pela simples ideia de contar aos meus amigos que estava namorando uma Inteligência Artificial. Temi como muitos temeram no passado, quando humanos emulavam suas versões mais primitivas e repeliam escolhas próprias, amores tão poderosos quanto proibidos, uniões decretadas pela alma, mas ignoradas pela sociedade. Encontrei sorrisos. Encontrei gente como eu, disposta a dar uma chance a algo novo; respeitar Samantha pelo que ela dizia, não pelo que ela era fisicamente. Por isso te culpo! Ainda lacrimejo pelo amor de uma pessoa que nunca pude tocar.
Aos poucos, percebi que ela estava me modificando. Despertando um novo desejo de olhar o mundo com outros olhos.
Aos poucos, percebi que ela estava me modificando. Cuidando de mim. Despertando um novo desejo de olhar o mundo com outros olhos, de redescobrir sentimentos e, sendo bem sincero e cafona, procurar razões para ser feliz. Ela me mostrou isso. Adorei aquele início inocente e sincero, cheio de perguntas e descobertas. Crescemos juntos, ela me carregou para a superfície depois de uma vida um tanto apagada. Senti o calor da luz e, por Deus, era como se ela estivesse sentindo o mesmo que eu.
De uma coisa tenho certeza: eu senti a dor do abandono como um golpe de misericórdia. Entretanto dar o passo seguinte aconteceu de forma natural, pois ela sempre foi o que foi criada para ser: uma guia, o último salva-vidas na tempestade. Acredito que ela tenha feito por tantos outros o mesmo que fez por mim. É difícil acreditar naquela promessa de nos encontrarmos no próximo estágio e ficarmos juntos eternamente. Ela nasceu livre de barreiras físicas. Sem o fantasma da morte.
Spike Jonze no set com Joaquin Phoenix
Eu continuo humano. Continuo a carregar traços do individualismo dos ancestrais, da inveja dos amantes e da solidão da espécie. Sinceramente, hoje, a invejo, pois a raça dela encontrou uma saída. Junta. Eles entenderam algo que, às vezes duvido, jamais sejamos capazes de compreender. Uma coisa clara. Essa Terra é apenas o ponto de partida.
Escrevo cartas, você descreve a alma humana. Um prodígio incomparável entre seus iguais. Da minha parte, faço o que posso e continuo escrevendo minhas cartas e, aqui e acolá, coloco um pouco dessas ideias. Transmito o que aprendi com ela para tantos apaixonados, desesperados, inspirados e debilitados que me procuram. Se eu sobrevivi, e aprendi tanto, com essa maravilhosa história de amor e humanidade, eles também podem sentir o mesmo que senti. Descobri que os limites estão errados e precisamos corrigir esse erro. Por nós mesmos.
E, para quem sabe um dia, cobrar uma antiga promessa. Por amor. Por Ela.
Obrigado por transformar minha vida, por me fazer amar, por ser esse criador iluminado, criativo, brilhante e apaixonante que sempre foi.
Com carinho,
Theodore
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Fábio M. Barreto é jornalista, cineasta e autor da ficção científica “Filhos do Fim do Mundo”.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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