“Noé”: Filme grande, fé, magia e… Transformers!

Superação é uma constante na obra de Darren Aronofsky que atinge seu ápice em “Noé”, uma lenda atemporal utilizada para estudar o sujeito moderno e sua obstinação. Mesmo cercado pela magia divina, ao se considerar as decisões de Noé, vivido por Russell Crowe, é impossível não olhar o homem e suas limitações. E essa é a proposta do diretor, aparentemente tão obstinado quando seu protagonista e tão fiel à arte como Noé a Deus.

Mas as duas línguas são compatíveis? A pergunta é para a posteridade, mas baseada num fato: entrar para assistir “Noé” para julgar verossimilhança ou a lógica bíblica é um tiro no pé, pois fé e magia – além dos transformers/ents! – são peças fundamentais do universo criado pelo diretor, no qual a presença do Deus judaico-cristão é tão latente e palpável quanto a água dos rios.

“Noé” é o maior “projeto ego” de Darren Aronofsky, começando pela fixação pela passagem bíblica desde a juventude e terminando com a retomada dos épicos religiosos, dez anos depois da controversa estreia de “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson. Aronofsky utilizou uma leitura judaica que prevê a inserção de outros trechos relevante ao assunto para a complementação e interpretação da história do dilúvio, que não tem mais de três páginas na bíblia cristã.

Mas, embora ele tenha ganhado a guerra para lançar a sua versão nos cinemas, precisou incluir alguns elementos claramente hollywoodianos para gerar drama e motivar a história ao longo da longa jornada vivida pela família de Noé desde o sonho divino até a chegada do dilúvio.

Darren Aronofsky no set

Darren Aronofsky no set

Noé

E por que tudo isso é relevante? Noé faz as vezes do homem atribulado e perante uma sequência de escolhas fundamentais, entretanto apenas duas serão de fato transformadoras em escala histórica (pelo aspecto bíblico). Todos vivemos cercados por decisões, por dilemas e muitas dúvidas, e Aronofsky transferiu todas essas características para o mito.

Por mais que a missão e o incentivo para as decisões de Noé sejam originadas do criador, o livre arbítrio se faz valer e a decisão é dele. Só dele. Curiosamente, é isso que mais atribula o personagem de Russell Crowe. Qual é a escolha certa? Qual a vontade do criador? Vida ou morte? Fé espiritual ou fé na força do homem? Muitas dessas perguntas, que ecoam na obra de J.R.R.Tolkien, por exemplo, se fazem presentes na leitura de Aronofsky.

Entretanto, “Noé” também tem sua cota de respostas e reações previsíveis, afinal, ele segue a lógica de que os descendentes de Noé repovoaram o mundo após o dilúvio divino. Há elementos interessantes ali, como a tentativa de conciliar as teorias criacionistas com a ciência moderna, mas falha justamente por precisar do maior Deus Ex Machina do cinema para justificar o surgimento do homem.

Outro ponto é a raiz da desavença entre Noé e o filho a quem é atribuída a origem dos povos africanos (que seria improvável por conta de um erro narrativo do filme). E é justamente aí que a tentativa de julgar o roteiro pelo que é lógico e o que não é fica problemático.

A sequência dos anjos caídos, transformados em transformers recalcados de pedra, testa a disposição do espectador. Quem resiste a essa, vai superar todas as outras invenções ou adaptações bíblicas. Pelo menos oferece uma teoria de como 8 pessoas teriam construído uma arca gigantesca e mantido milhares de animais em cativeiro durante um bom tempo.

Darren Aronofsky e Russel Crowe

Darren Aronofsky e Russel Crowe

É forte, no aspecto cinematográfico, a impressão de que Aronofsky ficou tão obcecado por Noé quanto o personagem por sua missão

A impressão de que Aronofsky ficou tão obcecado por Noé quanto o personagem por sua missão, é forte no aspecto cinematográfico. A obra é quase um grande ponto de vista, tentando compreender as decisões das pessoas à sua volta, contanto que elas ajudem o protagonista a ter forças para realizar a tarefa hercúlea. Noé se transforma em alguém tão industrial (elemento maléfico, de acordo com o roteiro) quanto os homens maus que justificaram essa carnificina bíblica.

Mas até que ponto ele é melhor apenas por estar seguindo os ensinamentos do Jardim do Éden e de seus antepassados? A questão é deixada em aberta em boa parte da trama e tanta criar uma ponte entre o arquétipo bíblico com o homem moderno, que carrega o mal dentro de si, mas pode optar pela bondade. É um jeito interessante de tratar a velha luta entre Bem e Mal, mas centrada num único personagem que, na mão de um diretor menos obstinado, teria sido apenas um arauto silencioso do criador.

O mesmo não pode se dizer da maioria dos demais personagens, que tem pouca variedade dramática e se mantém os mesmos durante toda a exibição. Logan Lermann acaba sendo o ponto mais fraco ao antecipar seu desfecho logo na primeira cena. Lembrou Sméagol vendo Um Anel pela primeira vez, corrupção instantânea.

É um filme grande e revelador sobre Aronofsky, mas não um grande filme inesquecível, distante dos grandes trabalhos do diretor

Jennifer Connely tem bons momentos, mas estava ali apenas para apoiar o marido, tendo apenas uma oportunidade de brilhar, que aproveita bem. O destaque mesmo fica por conta da “estranha” da família, vivida por Emma Watson, num papel impressionante e que, sozinha, justifica a ida ao cinema.

É estranho analisar uma história seminal que, sejamos religiosos ou não, moldou o caráter humano em tantas maneiras distintas e, por si, reflete as dúvidas e atribulações que enfrentávamos há mais de 5 mil anos. Algumas coisas parecem não mudar, mas o desejo de escolher a opção correta nunca vai nos abandonar.

Era preciso um filme desse tamanho para uma discussão tão “simples”? Não, mas os épicos religiosos sustentaram Hollywood por tanto tempo e, quando bem feitos, marcam o cinema para sempre, imortalizando contos, enaltecendo personalidades e realizações que, independente da crença, são seminais para a Humanidade (vide a presença de dilúvio em pelo menos três das grandes religiões atuais). É um filme grande e revelador sobre Aronofsky, mas não um grande filme inesquecível, distante dos grandes trabalhos do diretor.

O primeiro trailer de “Noé”, de Darren Aronofsky

Noah

Depois de “Cisne Negro”, o diretor Darren Aronofsky assumiu a missão de levar para os cinemas um filme apocalíptico de proporções bíblicas. O começo foi problemático, já que a Industrial Light & Magic declarou que tinha em mãos os efeitos visuais mais complexos que já tinha feito.

Mas hoje a Paramount Pictures revelou o primeiro trailer de “Noé”, com Russel Crowe no papel principal, e os animais em CGI parecem impressionantes. Aronofsky tem em mãos um material que, a princípio, não combina muito com seu estilo, mas ele promete não deixar de lado as obsessões e personagens perturbados que o deixaram famoso.

“Noé” estreia em 28 de março de 2014, e tem ainda Jennifer Connoly e Anthony Hopkins no elenco. Assista o trailer acima.

Brainstorm9Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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