O Hobbit: Uma jornada de decisões inesperadas
Posted in: UncategorizedTrês parágrafos informativos são necessários antes de começarmos a falar sobre “O Hobbit: Uma Jornada Inesperada”, afinal, nem todo mundo entende de frame rate e motion blur. Aí vão eles, de forma bem curta.
Frame rate: normalmente, assistimos filmes com 24 quadros por segundo (frames per second, ou fps, em inglês), ou seja, a cada segundo, o projetor mostra 24 imagens. O resto é preto. Nossa retina faz o trabalho de unir cada imagem criando assim o movimento. Esse é o modo atual de se filmar, projetar e ver filmes no cinema. Na TV, essa velocidade fica entre 29.94 e 30 fps.
Motion Blur: esse movimento criado pela união dos 24 quadros gera algo chamado motion blur, ou seja, um sensação de “borrão” ou transição da imagem. Por isso que, quando você dá pause, nem todas as imagens estão em foco. Culpa dessa natureza borrada dos 24 quadros.
48 quadros por segundo: nessa velocidade, o projetor mostra 48 imagens por segundo, ou seja, o dobro do habitual. Qual o resultado? Você tem mais informação, a imagem é mais perfeita e o motion blur é reduzido drasticamente ao olho humano, afinal, há menos espaço vazio para ser preenchido e a sensação de foco dura mais tempo. Aliás, esse é o mesmo conceito aplicado à câmera lenta, pois quanto mais quadros você tiver, mais você pode diminuir a velocidade sem borrar tudo. Filmei com 200fps uma vez, foi divertido!
A escolha de Peter Jackson
Diretor e estúdio resolveram fazer uma mudança da forma mais traumática possível: num blockbuster tão relevante para os nerds quanto para o mercado
Pois bem, agora podemos falar sobre “O Hobbit”, afinal de contas, essa é a maior e mais relevante discussão envolvendo o novo filme de Peter Jackson. Ele resolveu mudar a velocidade de filmagem e projeção de 24fps para 48fps. Há um resultado essencialmente neutro aí: ele mudou o jeito de vivenciarmos o cinema. Mas a neutralidade dura pouco, pois bastam alguns segundos de filme para o espectador escolher um lado. Isso é mais importante do que parece, pois, especialmente quem não gostou da mudança, vai passar o filme todo incomodado e procurando diferenças. Esse é um dos maiores inimigos do bom cinema: tirar o espectador da história e permitir que o aspecto técnico o distraia.
Ou seja, para muita gente, esse é o maior convite para odiar “O Hobbit” logo de cara. Estão errados? Difícil dizer, pois o espectador compra ingresso, nesse caso, para voltar à Terra-Média, não para ver as últimas invenções da Terra. Mas, como tudo no cinema, o resultado é subjetivo e muita gente adorou, especialmente quem já se acostumou com aquela modalidade de aceleração de imagem que TVs HD oferecem há um tempo. Tanto na TV quanto no cinema, o resultado é o mesmo: a imagem fica diferente, parece mais real, como se fosse uma janela em vez de uma tela; logo, a relação do espectador com a obra muda.
E daí surge a discussão sobre essa decisão de Peter Jackson. Mudanças desse tipo tendem a acontecem em movimentos cinematográficos menores, em filmes sem tanto apelo financeiro e precisam de maturidade e embasamento técnico para, depois, serem abraçadas pelos grandes estúdios. PJ e o estúdio resolveram fazer isso da forma mais traumática possível num blockbuster tão relevante para os nerds quanto para o mercado (tendo em vista que todos “O Senhor dos Anéis” foram máquinas de fazer dinheiro). Ou melhor, em três blockbusters, afinal, “O Hobbit” foi dividido em três e todos foram feitos 48fps.
Não há meio termo nessa luta, ou dá certo e criasse um novo tipo de espectador, ou vamos relembrar a virada do milênio, quando “Star Wars: Episódio I” decepcionou tanto que afundou “Episódio II”, um filme melhor, mas ignorado pelo público. Sim, são paralelos distantes, mas o mercado tende a repetir comportamentos. Mas essa é apenas uma possibilidade.
Se der certo, vamos ter o maior racha das escolas de cinema, com PJ liderando um novo estilo. Ignorando totalmente os estúdios oportunistas da base da cadeia alimentar que vão filmar até festa de aniversário com 48fps só para entrar na onda (fãs de “Premonição”, preparem-se!), a briga vai ser similar à recente reintrodução dos filmes 3D. Algo necessário ou truque? No caso de “O Hobbit”, a mistura 48fps com 3D infelizmente borda a segunda opção com um festival de objetos sendo arremessados contra a tela.
Um problema conceitual é: como o diretor quer que vejamos o filme?
O 3D, responsável por investimentos históricos na atualizações de salas de cinema ao redor do mundo, já recua e tem opositores fortes como Christopher Nolan, que optou pela filmagem nativa em IMAX para sua trilogia “Batman”. Entreter, provocar, os dois ao mesmo tempo? Qual a função do cinema? Peter Jackson fez ótimo trabalho na primeira trilogia e cravou seu nome na história, mas, como todo realizador, quer contribuir de outro modo. Fez sua jogada. Apostou numa nova geração, no uso diferenciado da tecnologia a seu dispor e gastando todos os cartuchos com os fãs de Tolkien e, por que não, de Peter Jackson. Por isso chamei a decisão de traumática.
Não tem volta.
Outro problema conceitual é: como o diretor quer que vejamos o filme? Sempre lembro do Sergio Leone mandando um 2:35 (o formato mais widescreen de todos, antes do Anamórfico) e valorizando a paisagem ao máximo. Foi assim que ele viu o filme, era assim que ele queria que víssemos. E agora, como fica? PJ quer que vejamos “O Hobbit” em 24fps? 48fps? 24 3D? 48 IMAX? Preto e branco com banda ao vivo? Nesse aspecto, o ato de fazer filmes está virando uma zona e amplia as brigas entre espectadores, afinal, o formato afeta, e muito, a resposta ao produto. I have a bad feeling about this.
O Filme
A abertura do filme é de cair o queixo, rivalizando com a Batalha da Última Aliança, vista em “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”
Mas nem só de tecnicalidades vive “O Hobbit”, não é mesmo? Há um mundo de controvérsias à sua volta e outra delas é a separação da história em três filmes. “O Hobbit” é um livro só, mas o mundo criado de Tolkien é gigante demais, oferece opções infindáveis e, nas mãos de um diretor e fã competente como PJ, pode ser maravilhoso. Ele respeita a obra ao máximo e a transformou de “infilmável” em “sucesso incontestável”, agora fez de novo.
Entretanto, vai passar por provações difíceis. Como obra inicial, “O Hobbit” define personagens e apresenta aquele mundo com um olhar inocente e curioso. O filme faz uso dessa característica, mas incorre em exageros, especialmente em um personagem “novo”: Radagast, o Castanho. O mago apaixonado por animais e natureza faz as vezes de palhaço do filme e podia ter ficado de fora, assim como outros elementos que, de certa forma, infantilizam a história. Opa, peraí.
Infantilizar? Não é algo ruim, afinal, a obra de Tolkien tem essa função, é leitura obrigatória em escolas inglesas e americanas e, especialmente “O Hobbit”, foi escrito para crianças e adolescentes. Todos esses conceitos mudaram, nós mudamos. Queremos toda a aventura da Terra-Média, mas consideramos os elementos lúdicos como desnecessários (assim como eu, acima) e esperamos algo completamente traduzido para nossa mentalidade, nosso tempo. É uma situação bem complicada, não? Ser criança e adolescente mudou, a “vida adulta” invadiu muito desse território, mas “O Hobbit” continuou do mesmo jeito.
Nesse aspecto, pergunto se não aceitar a tolice é falha nossa, em vez do diretor que optou por mantê-la do jeito que foi concebida? Gostar ou não é outra história.
A abertura do filme é de cair o queixo. Anões! Anões na Montanha Solitária! Smaug! Porrada e ruína! Ela rivaliza com pompa e circunstancia a Batalha da Última Aliança, vista em “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”, e mostra como o passado da Terra-Média foi mais glorioso e grandioso do que o mundo à beira do colapso pelo qual o espectador se apaixonou anteriormente. É um espetáculo visual! Comentário de fã: isso só aumenta as esperanças de, um dia, ver “O Silmarilion” nos cinemas!
O roteiro é simples e, como esperado, um pouco estendido para justificar os três filmes. O maior problema, porém, é a reciclagem de ideias e tomadas. Toda aquela grandiosidade das paisagens da Nova Zelândia impressionou em “O Senhor dos Anéis”, agora ela retorna, mas com menor impacto, afinal, já vimos tomadas aéreas, montanhas gigantescas e os heróis – nesse caso os anões sem-teto – cruzando longas distancias com a música épica (também repetitiva com uso descarado de leitmotiv com variações do tema principal dos anões). Gandalf repete alguns de seus truques (usa uma mariposa como mensageira); retornamos a um reino subterrâneo (Goblin Gate); e vemos um herói ser derrotado temporariamente (sem spoilers, mas o paralelo é a Gandalf cair com o Balrog).
O quanto o espectador médio vai lembrar depois de anos sem ter visto “O Senhor dos Anéis” é um mistério, mas, no meu caso, os paralelos foram gritantes, logo, relevo por estar fora da curva. Como filme independente funciona e faz uma escolha clara: é mais leve, óbvio e mantém o mesmo ritmo ao longo da projeção. Nesse ponto, segue a receita de J.R.R. Tolkien, que utilizou “O Hobbit” como tubo de ensaio para o que viria a fazer nos livros seguintes.
Com Tolkien funciona assim: aprecie seu mundo, viva com seus personagens e maravilhe-se com sua beleza.
As relações entre Bilbo Baggins (em ótimo trabalho de Martin Freeman) com os anões refletem esse espírito, de fato, aventureiro e divertido. Ninguém se conhece direito, mas barreiras são quebradas instantaneamente, há um sentimento de perda muito grande, algo que Bilbo vai entender ao fim de sua jornada. Esse livro é a cartilha básica do RPG clássico: o herói inicia uma missão, encontra aliado, encontra itens mágicos, passa por provações, descobre novas habilidades conforme o nível de dificuldade aumenta. Logo, corre riscos similares a “John Carter”, por manter uma estrutura narrativa dos anos 30 (o livro de Tolkien foi lançado em 1937) e expô-la ao espectador moderno, descaradamente carente por ação, encadeamento de ideias mastigado e sem paciência.
As presenças de Galadriel (linda demais!), Elrond e Saruman no encontro do Conselho Branco servem para aproximar o espectador desavisado de que os elfos e magos já estão aprontando com o destino da Terra-Média há um tempo e também para confundir tudo, afinal, Saruman ainda estava do lado dos mocinhos naquele ponto. A menção do “Necromancer”, porém, mostra os princípios de sua corrupção. Essa era a única função de Radagast, aliás, fazer essa fofoca.
O objetivo infanto-juvenil é claro: não há sangue (adeus ao sangue negro dos Orcs), nem mesmo quando passam a faca na barriga do Rei Goblin; as decapitações acontecem em tomadas mais distantes; o roteiro preza pelo didatismo; e a edição escorrega pouco. Numa das cenas mais arbitrárias do filme, os heróis resolvem visitar uma caverna de Trolls sem a menor necessidade, apenas para encontrar três das espadas mais poderosas da Terra-Média. Essa foi a melhor ideia encontrada por quatro roteiristas, entre eles PJ e Guillermo del Toro? Fato, é assim que encontram as espadas no livro, mas o espectador de cinema adora reclamar de “forçadas de barra” como essas. Quer outra? Thranduil, o rei élfico e pai de Legolas, reúne o exército e vai até a fortaleza anã, durante o ataque de Smaug, só para olhar, fazer cara de nojinho e virar as costas.
No geral, “O Hobbit” evolui bem, apresenta seus personagens, promove três batalhas em larga escala, novamente, estabelecendo a diferença primordial com “Game of Thrones”, e dois conflitos menores e mais pessoais, cumprindo a obrigação com o livro e estabelecendo os limites dos personagens. Embora alguns dos anões sejam soldados veteranos, a maioria da companhia de Thorin Escudo de Carvalho não é formada por porradeiros seculares e, assim como Bilbo, precisam aprender a encarar toda a fauna inimiga de Tolkien.
Tirando alguns elementos já citados, fiquei empolgado com “O Hobbit”, reencontrei a felicidade de voltar à Terra-Média com uma história que, recentemente, comecei a ler para minha filha e só tenho boas expectativas em relação aos próximos dois episódios. “A Sociedade do Anel” sempre foi o mais devagar da trilogia original, mas precisava apresentar tudo, depois veio aquele espetáculo de direção de “As Duas Torres”. O mesmo deve acontecer com a nova trilogia. Há muito que ser construído antes da Batalha dos Cinco Exércitos e o confronto bombástico com Smaug!
Gostei? Não gostei? E os críticos que detonaram? E quem disse ser o melhor filme do ano? Não quero saber, vou ver novamente, dessa vez em 24fps, e novamente, e novamente, e novamente. Com Tolkien funciona assim: aprecie seu mundo, viva com seus personagens e maravilhe-se com sua beleza. Qualquer coisa além disso é descartável.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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