Setenta anos Caetanos

Poucos artistas sabem envelhecer tão bem quanto Caetano Veloso.

Você pode até não gostar dele, é seu direito. Mas você não pode negar a importância e o peso histórico que esse artista (na minha opinião, quase sempre genial e um dos mais completos da nossa música) exerce sobre nossa cultura e nossa história. Dono de uma obra riquíssima, consistente e que ajudou a definir grande parte da cultura desse país por pelo menos 45 anos, Caetano chega à maturidade gozando da mesma popularidade que sempre teve e se tornando um ídolo também de novas gerações, graças à sua inquietude criativa e seu radar sempre ligado ao que vem pela frente.

É fácil perceber o vigor criativo de um artista pela versatilidade e evolução de sua obra. De Domingo (álbum de estreia, junto com Gal Costa, lá em 1967) a Zii e Zie (álbum recente, de 2009, que traz a ousada formação e sonoridade Transrock), o que Caetano construiu ao longo de sua invejável discografia foi um retrato fiel do que ele vivia em cada momento, não se prendendo ao estilo que o consagrou e não se rendendo a tendências comerciais da indústria fonográfica.

Claro, há centenas de hits. Mas eles são o fruto de um mérito e competência autorais que sobrepujam quaisquer determinações rasas ditadas por esse ou aquele ritmo passageiro da moda. A prova disso está na própria sobrevida de todos esses clássicos da MPB, cuja qualidade ri na cara do tempo e do estilo datado que porventura possa ter ameaçado sua força, cada um à sua época.

Não. Aqui a história é outra. E não importa se você ouve Superbacana, Podres Poderes, Não Enche ou Minhas Lágrimas.

Em qualquer época, Caetano é o mesmo desafiador, o mesmo poeta, o mesmo questionador e o mesmo provocador.

O mais legal da sua obra é perceber que essas características se mantêm intactas independentemente de disco, de fase, de tendência.

Quando ele quer ser politico, desafia a todos nós, ao governo, ao mais requintado dos esclarecidos com obras do quilate de Araçá Azul, Jóia, Transa. Quando ele quer ser “apenas” músico, lhe sobra amplitude, e ele consegue ir de seu lado mais obscuro ao seu lado mais doce sem perder a personalidade e, muito menos, o tino para a melodia. Como ele mesmo diz: “Onde queres prazer, sou o que dói?. Onde queres tortura, mansidão. ?Onde queres um lar, revolução?. E onde queres bandido, sou herói.”

Na música ou na literatura, Caetano tem desafios de sobra para quem estiver disposto a encará-los.

Se você é fã, sabe do que eu estou falando. Se ainda não é, está aí um gigante para você descobrir. Dá para ouvir todos os discos aqui.

Em Araçá Azul, Caetano clamava: “com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”.

Hoje, aos 70 anos, ele está mais vivo do que nunca. E sua obra já é imortal.






Brainstorm9Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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Pra ficar tudo joia rara: Caetano Veloso

Os anos de exílio foram criativamente férteis na carreira de Caetano Veloso.
Durante seu período em Londres, ele compôs e gravou seu disco em inglês (o de London, London e A Little More Blue), lançou o clássico Transa, de 1972 e juntou na cabeça um amontoado de ideias experimentais, que viria a desenvolver nos próximos dois álbuns.

Ele voltou para o Brasil e seu período pós-exílio continuou sendo um dos mais criativos da sua obra. Araçá Azul (1973) e Jóia (1975) são seus dois discos mais “malucos”, que formam um ciclo interessante na discografia do tropicalista.

Por não poder dizer o que queria a qualquer hora, Caetano teve que recorrer ao experimentalismo para esconder seus recados anti-ditadura. Em Araçá, o baiano se vê no meio de uma crise existencial e de identidade, naturais da depressão pós-regresso de qualquer ser humano. O disco é temperado de melodias interessantíssimas – por vezes comoventes – misturadas num bolo de sons desconexos e aparentemente “sem sentido”. As mensagens estão lá, nas entrelinhas, no meio das conversas, entremeadas à estranheza da música.

O disco é tão esquisito – e ao mesmo tempo tão revolucionário – que ninguém entendeu, literalmente, nada. Na época, foi alvo de críticas duras e teve boa parte de sua vendagem devolvida pelos consumidores.

Por outro lado, o tempo mostrou sua importância e o álbum virou tema até de teses de mestrado. Peter Dietrich publicou na introducão de seu trabalho para a USP: “Araçá Azul é considerado a mais radical experiência tropicalista já realizada. Ela é obra do cantor e compositor baiano Caetano Veloso, um dos maiores e mais fecundos pensadores da cultura brasileira”.

Tentando pegar mais leve no experimentalismo e na intelectualidade aguda, Caetano maneirou e fez o ótimo Jóia. Menos difícil de compreender, o álbum é um verdadeiro desfile de poemas concretos musicados em melodias bem construídas. Ouvi-lo com fone de ouvido é praticamente uma aeróbica para os tímpanos.

Assim como no disco anterior, os jogos vocais e os violões cristalinos – aliados a uma percussão assustadoramente “tropical” – despertam uma explosão no seu cérebro. E Jóia, então, conseguiu emplacar uma música linda, que se tornaria clássica no repertório do compositor: Lua, lua, lua, lua.

Vivendo uma fase de aguçada produtividade, lançou junto com Jóia outro grande disco: Qualquer Coisa. Neste, ele dá um tempo para o ouvinte respirar e arejar a cabeça depois de tanta intelectualidade. Entre suas melhores composições (Qualquer Coisa, A Tua Presença Morena e Nicinha), ele também entrega versões de Beatles e outros belos covers.

Dois anos depois, Caetano lançou o espetacular Bicho.

“Bicho” é uma gratificante coleção de pequenas maravilhas da MPB. Cada estrela se espanta à própria explosão.

Deliciosamente tropicalista, o álbum marca um dos melhores momentos de Caetano Veloso e serve para relembrar a gente do gênio que ele é (quando quer). É um disco coerente, com estilo próprio, com identidade, com canções maduras e bem resolvidas, sem experimentalismos pretensiosos.

A pulsante Odara abre o disco e situa você no ambiente quente da Bahia dos anos 70. “Deixa eu dançar”, diz ele no primeiro verso do álbum, como se fizesse um mea-culpa pela música complexa e nada dançante de suas incursões anteriores. E após 7 minutos viajando na transição do mundo real para o Brasil-Bahia da tropicália dos anos 70, você aterrissa na ensolarada Two Naira Fifty Kobo. Uma música que, apesar do nome bizarro, confirma sua chegada em outro ambiente. É tão relaxante que parece que alguém te trouxe uma água de côco e te colocou numa rede embaixo de um coqueiro.

O álbum segue com Gente e Olha o Menino, uma típica canção Jorge Beniana com todos os seus maneirismos espetaculares. A séria e política Um Índio, que também virou clássico, revela um compositor cósmico, aproveitando metáforas espaciais e grandiosas para dar seu recado.

Tigresa continua a viagem pela densa selva do álbum, apelando por justiça numa música que esbanja malícia. E, para fechar o disco, a sutileza do Leãozinho (uma das músicas-símbolo de Caetano) e a linda estranheza de Alguém Cantando: uma ode à música como forma de expressão e artifício capaz de emocionar qualquer coração, quem quer que a execute com sinceridade.

Bicho é um grande representante da obra de Caetano e da Música Brasileira.

Discaço.



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