A imagem mais cristã do século XXI

Cruz

Um exercício literário

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Brainstorm9Post originalmente publicado no B9
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Liberdade, Igualdade e… Violência?

A violência parece ser uma constante na história da humanidade. Dependendo do olhar que lancemos ao passado, teremos a nítida impressão de que nossa história foi escrita com o sangue de muita, muita gente. E para provar que não somos muito melhores que nossos antepassados, temos visto por todos os cantos da internet uma série de declarações que parecem reforçar uma conduta agressiva. A famigerada fala de Rachel Sheherazade, falando que era “compreensível que os tais ‘justiceiros’ amarrassem aquele menino no poste” dada a situação precária da segurança pública, foi um dos exemplos mais marcantes das últimas semanas.

Valem menção também todas as polêmicas levantadas pelo deputado Jair Bolsonaro, durante sua tentativa de assumir a Comissão de Direitos Humanos e a situação que envolveu as declarações de Joaquim Barbosa no STF, no que tange as retiradas de acusação de formação de quadrilha no caso do mensalão do PT.

No meio de tudo isso, quando um era acusado de estar incitando a violência ou deturpando algum fato, o falante geralmente diz “eu tenho o direito de dizer o que quiser”. E ele está certo, por mais errado, certo ou violento que seja seu discurso. Pior: nos casos que achamos absurdos, vemos que há um grande número de pessoas que defende tais ideias. E nós ficamos malucos, tentando achar qualquer contra argumento que o valha. Sentimo-nos violentados. E outro lado também.

O assunto “que tipo de violência está sendo exercida (de quem e contra quem)” está quente nas redes sociais. Em ano de eleições presidenciais (e Copa do Mundo, não nos esqueçamos), será muito interessante verificarmos como os candidatos se posicionarão midiaticamente. As aulas que você, leitor, teve de análise de discurso e imagem poderão ser muito úteis para pensar acerca do cenário que se monta diante de nós.

Em casos de pessoas que supostamente “merecem morrer”, poderia-se recorrer ao italiano Maquiavel – Ainda que tal frase nunca tenha sido proferida por ele – e perguntar “os fins justificam os meios”?

No último post que fiz, acerca dos protestos que estão ocorrendo pelo mundo, uma série de questões foi levantada sobre nosso consumo de informações no ambiente virtual e as formações de opiniões num Estado democrático. A legitimação do uso ou não da violência parece ser um debate constante. Com base nos últimos três Braincasts lançados, podemos também expandir essa dúvida.

Por exemplo: se o povo deseja sangue, ele deve obtê-lo? Há sabedoria na opinião popular, mesmo quando ela parece querer um retorno da barbárie? Essas opiniões são nossas (do povo) ou correspondem a grupos de interesse de elite, que ditam o que queremos através das mídias de massa? Somos influenciados pela mídia? Se sim, quanto? E quando este discurso se espalha na internet (supostamente o meio de comunicação mais democrático que já desenvolvemos), como lidar com tudo isso?

Tendo em vista todos esses fatores, acredito ser pertinente aprofundar algumas das questões do texto anterior neste post. Para tanto, focarei na questão da violência, já que ela parece ser um tema bastante em pauta atualmente.

Bolsonaro

Sangue

Violência e Punição: uma breve história

Um dos problemas em falarmos sobre o papel da violência na comunicação é o de defini-la. Acredito que, na maioria dos casos, haveria pouca discussão sobre o caráter de violência que existe em atos extremos como assassinatos ou sequestros. Mesmo nas possibilidades de contextualização, buscando os motivos de tais atos, haveria uma concordância de que matar alguém é um ato de extrema violência – mesmo que esse alguém seja Hitler.

Em casos de pessoas que supostamente “merecem morrer”, poderia-se recorrer ao italiano Maquiavel e perguntar “os fins justificam os meios”? Voltarei a Maquiavel em breve. Por ora, acho importante mencionar que, de acordo com o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da USP e um dos grandes especialistas em Maquiavel no Brasil, essa frase nunca foi proferida pelo autor italiano.

Voltando à questão da violência e sua dificuldade em definição, podemos citar aqui os velhos casos de “piadas mal-entendidas”. Uma “piada” racista ou machista, no ouvido de um ou outro, pode ter efeitos dos mais diversos. Para os que se ofendem, é recorrente taxá-los de “sem senso de humor”. Aquele que se ofende com a piada sente-se violentado direta ou indiretamente. Do outro lado, o que proferiu a piada, se não compreendido, também sente-se violentado (ataca-se, no caso, sua estética humorista e seus princípios morais – ambos são colocados em dúvida).

Quero deixar claro que sou absolutamente contra piadas racistas e machistas (e aprendi o perigo delas após muito tempo). Se fosse para defender um lado, defenderia aquele que se sentiu ofendido. Mas não é essa a questão que desejo levantar aqui, mas sim duas: primeiro, os exemplos que citei podem ser considerados violentos? Segundo, há alguma violência permitida?

Podemos pensar em graus. Um tapa na cara de alguém, uma ofensa, seriam atos violentos em graus menor do que um assassinato. Acho que essa ideia seria bem aceita pelo leitor. Mas, novamente, perguntamos: algum nível é aceitável? Qual seria o grau de violência socialmente aceitável nas relações contemporâneas?

Violence

Em seu livro “A História da Violência”, o historiador Robert Muchembled declara: sem dúvidas, a violência social sofreu uma grande regressão a partir do fim da Idade Média, e é um desafio do historiador entender os motivos para isso. Uma das análises curiosas que ele faz é mostrar que é no momento em que o número de assassinatos começam a diminuir que ele torna-se um problema social. Tornando-se fenômeno cada vez mais raro, coube às autoridades de tais tempos e lugares questionarem “o que fazer com aquele que agride?”.

Sem dúvida, a preocupação com a violência remonta a tempos bem mais remotos do que o medieval. O famoso código de Hamurabi, datado de cerca de 1800 A.C., já explicitava a norma de conduta “olho por olho, dente por dente”. No antigo testamento bíblico, temos os 10 mandamentos, cujo 6º é “não matarás”. Outras civilizações da antiguidade, como os gregos e romanos, foram também exemplos nesse quesito.

Esta última, inclusive, chegou a elaborar complexas análises na questão de danos morais e compensação pelos mesmos. Sendo assim, é curioso notarmos que a violência sempre esteve na pauta das diferentes civilizações que já caminharam no planeta. Por mais que diferentes formas de se lidar com ela tenham surgido, desde o “olho por olho” de Hamurabi até o “dar a outra face a tapa” cristã, ela demonstra ser constante.

Poderíamos dizer então que ela é “natural” do ser humano, mas isso também é perigoso, pois pode ser usado como tentativa de legitimar algum ato cruel. Um exemplo disso é aquela lógica de elevador de que “a humanidade sempre foi violenta, portanto também posso ser agora”. Chamo isso de “lógica de elevador” por ser aquele tipo de conclusão simplista que pode chegar-se em uma rápida viagem de um andar para outro.

A relação entre “transgressão da norma” e “punição” seria historicamente constituída de acordo com certos grupos que detém o poder. Nosso senso de justiça seria, então, histórico e culturalmente construído.

Curiosamente, recentemente tive uma conversa com uma vizinha que falou algo do tipo “você ainda não tem filhos? Tudo bem, o mundo já está superpovoado mesmo. E agora que não tem mais guerras no mundo, não dá nem para dar uma limpada”. Eu imagino o que os povos em conflito na África e Oriente Médio pensariam sobre isso. Mas divago.

Outro livro obrigatório a ser citado nessa discussão é o “Vigiar e Punir”, do filósofo Michel Foucault. Analisando a história das punições, Foucault foi capaz de estabelecer uma mudança na sensibilidade punitiva que via no encarceramento uma via de correção mais humanitária em comparação com o suplício público. Contudo, segundo o autor, isso dependeria da formação de “corpos dóceis”, que interiorizam as regras sociais estabelecidas de modo a sentirem-se vigiados a todo o momento, mesmo quando não estão.

Seria este constante princípio de alerta que nos manteria em linhas de conduta socialmente aceitáveis. E isso, segundo ele, ocorreria via uma série de medidas legislativas que atendem a determinados grupos de interesse. Dito de outra forma, a relação entre “transgressão da norma” e “punição” seria historicamente constituída de acordo com certos grupos que detém o poder. Nosso senso de justiça seria, então, histórico e culturalmente construído.

Sheherazade

Sangue

Violência e Cultura

Acima de tudo, acredito que a violência é um ato que exige interpretação de acordo com o molde cultural na qual o indivíduo está inserido. Como estamos condicionados pela cultura, qualquer ato que se diga “natural” depende de seu interpretante, ganhando assim formas diversas. O cenário islâmico é bem provocador nesse sentido. É lugar-comum do ocidental achar que a religião islâmica é machista (e, sem dúvida, sob nossos olhares, realmente ela é em inúmeros aspectos).

A Burca, por exemplo, seria um símbolo máximo de que a mulher não domina seu corpo, sendo este propriedade ou da sua família ou do seu marido. Ao mesmo tempo, é cada vez mais comum os relatos de mulheres que se sentem extremamente constrangidas com homens que as abordam na rua.

Debatemos sobre isso no AntiCast 116, sobre Feminismos e Discursos de Gênero, portanto não vou me alongar nessa questão aqui. Quero apenas fazer um contraponto com o cenário islâmico dito machista: é norma reconhecida nos países islâmicos que uma mulher que sai de burca não pode ser abordada por um homem. Caso seja, este homem está cometendo um crime, previsto em lei.

Há violência dos dois lados: no ocidente, há um misto de “liberdade com consequências”. No oriente, uma sensação de “prisão libertadora”. Nos dois, há o problema da mulher conseguir se liberar da sua condição historicamente construída de “propriedade privada”. Muito se evolui dos dois lados, mas ainda estamos longe de um cenário satisfatório.

Acredito que, baseado em algumas mulheres que conheço, muitas aceitariam andar de burca na rua, se isso significasse que não seriam abordadas na rua. No ocidente, sequer temos essa opção. Discussão difícil essa num mundo que parece integrar-se cada vez mais através dos meios de comunicação. A sensação de andar em círculos é inevitável. Todos os lados parecem ter malefícios e ficamos determinados a escolher as opções “menos piores”, baseados nos nossos limites de interpretação do entorno.

Falando dos que estão mais perto de nós, eu sou apenas capaz de imaginar o tipo de concepção de “violência” que um morador de uma comunidade da periferia possui. Ao ver seu pai tendo sua dignidade violentada pelo Estado (preço da passagem do ônibus, sistema de saúde falho, baixo salário etc.), ou ainda de ver o traficante local tendo sucesso financeiro indo contra lei estabelecida, sou da opinião de que há aí um ciclo de violência que se autoalimenta. Obviamente há os casos daqueles que foram capazes de se superar, e daí há toda a discussão sobre meritocracia x condições sociais determinantes.

Somos violentos quando sonegamos imposto, quando recebemos o troco errado e não avisamos, quando invadimos a privacidade do outro e quando criticamos alguém.

Eu não sou absolutamente contra a concepção de meritocracia, mas acho que seus defensores esquecem de um dado fundamental: ela só é válida em um ambiente no qual todos possuem acesso a condições de oportunidades iguais. Por exemplo, em uma competição entre dois diretores de arte, que dispõem do mesmo tempo e ferramentas para realizarem seu trabalho, realizará o melhor trabalho aquele que souber ler melhor seu ambiente e inovar com mais contundência.

Em resumo, a criatividade poderá ser uma boa aliada – mas poderá ser pouco útil se um está usando um computador de última geração e o outro só possui um lápis e papel. Há sempre excessões, mas não são elas que determinam o ambiente todo. Sendo assim, gosto de pensar sempre num equilíbrio entre as duas coisas. Contudo, como geralmente lidamos com cenários desiguais, acredito que a violência social acaba desempenhando um papel mais determinante do que ideologias que pregam a existência de uma “boa índole”. E por violência, aqui, refiro-me a todos os seus graus.

Somos violentos quando sonegamos imposto, quando recebemos o troco errado e não avisamos, quando invadimos a privacidade do outro e quando criticamos alguém. Neste caso, não quero dizer que “é errado ser violento”. No último exemplo que dei, por exemplo, a crítica a alguém pode ser muito útil para aquela pessoa – e até para você, especialmente se ver que sua crítica está errada e pode aprender a aguçar seus critérios de julgamento com isso. Mas é um ato violento. Em grau muito menor do que um assassinato, sem dúvida.

Uma ideia parece surgir dessas ponderações: há alguma sabedoria no erro e na violência. Qual (ou quais) exatamente, não sei. Mas parece haver. E, com isso, voltamos à nossa dúvida original: qual tipo de violência seria permitida?

Dredd

Junto com o direito de expressão (e ação), há também o dever de se responder pelas consequências do discurso – especialmente se o fins não forem justificados.

Aprendendo com Maquiavel e Sheherazade

Apesar do subtítulo, quero deixar claro que discordo da opinião da jornalista, e vou explicar o motivo em breve. Antes disso, quero voltar ao pensador italiano, citado anteriormente.

Como já falei, de acordo com o filósofo Renato Janine Ribeiro, a frase “os fins justificam os meios” não é de autoria de Maquiavel. Contudo, parece sintetizar, de alguma forma, seu pensamento.

A obra mais famosa de Maquiavel, sem dúvida, é “O Príncipe”, datada do século XVI, na qual ele basicamente elenca uma série de diretrizes sobre como o monarca deve reger seu governo. Isso já é bem conhecido. Contudo, poucos sabem que Maquiavel era um Republicano, e uma das provas mais fortes disso é o longo tempo que passou escrevendo uma obra chamada “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”. Esta possui um caráter de profundo teor republicano. Não à toa, Rousseau, filósofo francês do século XVIII, levantou a hipótese de que “O Príncipe” era uma paródia. Contudo, ao lermos a obra, veremos que, se ela é uma piada, ela foi levada a sério demais.

Neste texto, Ribeiro retira do próprio texto de Maquiavel um exemplo interessante sobre o que pensa a respeito do Príncipe e seu papel político. Coloco o trecho em questão abaixo:

Árvore

“Se Maquiavel comec?a o livro especificando seu campo de interesse – o regime na?o republicano, mas mona?rquico; que na?o e? antigo, mas novo; que na?o foi obtido por armas pro?prias, mas alheias – ele praticamente o conclui com uma distinc?a?o que mais ou menos se sobrepo?e a esta. No penu?ltimo capi?tulo d’O pri?ncipe, afirma que dos resultados de nossas ac?o?es pode-se dizer que metade vem da fortuna (mais ou menos, o acaso, a sorte, boa ou ma?), metade da virtu?. Para ele, essa palavra na?o significa virtude moral, e por isso os estudiosos preferem cita?-la em italiano, a fim de preservar o sabor maquiaveliano.

A virtu? seria a excele?ncia do pri?ncipe, do condottiere, ao saber como enfeixar em suas ma?os os fios descosidos do destino. Tem virtu? quem sabe, em uma situac?a?o adversa ou apenas devida a? sorte, tornar-se senhor. Vejam o exemplo que da? Maquiavel: tempestades arrasam pontes e estradas, eis a fortuna; mas, depois, o homem refaz o que foi destrui?do, tornando-o mais resistente ao azar, eis a virtu?.

O que faz enta?o o pri?ncipe, na?o digo o ameac?ado pela ma? sorte, mas o que deve seu status apenas a? boa sorte, sem me?rito pro?prio, sem forc?as armadas suas que o defendam? Ele deve ser habili?ssimo. Cada gesto seu precisa estar dirigido a? construc?a?o de um poder que impressione. O grande exemplo de Maquiavel esta? em Cesare Borgia, quando esse pri?ncipe novo por excele?ncia – que deve sua posic?a?o apenas a? sorte de ser filho de papa – ganha a Romagna, enta?o assolada por bandidos.

Nomeia um preposto, Ramiro dell’Orco, para que acabe com eles, o que Ramiro faz com energia e crueldade. A regia?o esta? pacificada, mas Cesare ficou com fama ruim. Para sanar o entrave, Cesare manda matar, de forma cruel, seu pro?prio delegado, Ramiro. O corpo dele, ensanguentado, no centro da capital da Romagna, basta para mostrar que o pri?ncipe pode ser terri?vel e bom. Um gesto teatral fortalece Cesare Borgia.”

Suplício

Sangue

No caso citado de Cesare Borgia, pode saltar aos olhos do leitor o caráter de egoísta e sádico do Príncipe, que deseja manter seu status no poder ao invés de “pensar no povo”. O problema seria justamente esse: o Príncipe tem certeza de que sabe o que é melhor para seu povo. Pensando nisso, precisa manter o poder e faz o que for necessário para tanto.

Como eu gosto sempre de dizer, não existem pessoas que se dizem “malvadas” – o que implica dizer que não existe “gente de bem”, pois o julgamento de “bem” ou “mal” depende de quem está julgando. Todos acham que estão fazendo algo correto, mesmo nas piores das situações. Se pegarmos a totalidade de transgressões que realizamos todo dia, os casos em que sentimos genuína culpa são mais raros do que imaginamos.

Neste sentido, a lógica maquiavélica parece cair como uma luva. “Sei que o que estou fazendo é errado, mas é para um bem maior”. Uma variação é “não sei se o que estou fazendo é errado ou não, mas o resultado sem dúvida é para um bem maior”. Os fins justificando os meios. Contudo, isso é uma interpretação equivocada de Maquiavel. Como defensor da República, ele buscou justamente apontar os perigos de tais atitudes monárquicas.

E o que Sheherazade (entre outros citados no início do texto) tem a ver com isso? A questão é simples: num Estado democrático em que vivemos, todos tem o direito de falar o que bem entendem. Se ela acha que é compreensível amarrar alguém num poste, ela tem o direito de achar isso. Mas o que devemos aprender com Maquiavel e seu “O Príncipe” é que, junto com o direito de expressão (e ação), há também o dever de se responder pelas consequências do discurso – especialmente se o fins não forem justificados. E as consequências das ideias de Sheherazade não são das mais agradáveis para aqueles que defendem um cenário democrático.

Em primeiro lugar, como espero ter demonstrado, o “sentir-se violentado” é algo que depende de uma série de fatores. É importante sabermos quem está acusando a violência e o que Estado diz sobre isso. Ao permitir-se que o cidadão faça “justiça com as próprias mãos”, é importante lembrar-se daquelas aulas chatíssimas de História que teve, na qual o(a) professor(a) explicou o modelo dos três poderes, atuante no Brasil. Aquele que cria as Leis (Legislativo) não pode ser o mesmo que julga (Judiciário) e muito menos o que executa (Executivo).

Ditadura

Se concentrarmos esses poderes em apenas uma pessoa, entramos em um terreno perigoso: e se um dia o meu colega decidir me julgar? Em resumo, ao defender a legitimidade do “fazer justiça com as próprias mãos”, você está pondo em risco a própria liberdade. Ou você deseja viver num futuro pós-apocalíptico estilo Juiz Dredd? Ou deseja o retorno da Ditadura Militar?

Ao defender um novo Golpe, ou um modelo social que restrinja a liberdade do Outro, você está pondo em risco a sua própria.

O fato do Estado ter problemas em manter ordem e segurança a seus cidadãos é obviamente algo grave que deve ser trabalhado dentro dos trâmites legais e do exercício democrático. Particularmente, acho um absurdo ver tanta gente hoje em dia sonhando com um novo golpe militar no Brasil, querendo trocar a própria liberdade conquistada por uma ilusão de segurança. Primeiro: segurança para quem? Para você? Para as “pessoas de bem”? E quem decide quem é de bem ou não? Somos realmente tão egoístas e egocêntricos assim?

E se você acha que com isso estou querendo “defender bandido”, recomendo fortemente a leitura do texto “Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada”, de Ramon Kayo. Sobre as implicações de Sheherazade e sua demonstração de completo desconhecimento acerca do funcionamento de um Estado democrático moderno, recomendo este texto de David G. Borges, “A jornalista e os justiceiros do Flamengo”, muito esclarecedor.

Por fim, espero que o leitor entenda o seu próprio poder comunicativo. Ao pregarmos a legitimação do uso da violência, seja num jornal no horário nobre, seja na numa rede social para seus amigos, às vezes estamos realizando um atentado contra nós mesmos. Você tem direito de expressão e deve usá-lo à vontade. Mas aprenda a arcar com as consequências. Ao defender um novo Golpe, ou um modelo social que restrinja a liberdade do Outro, você está pondo em risco a sua própria.

Sejamos, portanto, menos preguiçosos no pensamento.

Brainstorm9Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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Protestos pelo mundo: Como o excesso de informação tem nos deixado mais confusos

É complicado emitirmos qualquer opinião sobre o que estamos vendo no mundo nos últimos 4 anos. Protestos afloram por todo o lugar, desde a Primavera Árabe até as recentes atividades na Ucrânia, Venezuela e, obviamente, no Brasil.

A internet, sem dúvida, tem sido uma grande ferramenta de articulação acerca de tais movimentações sociais – e tem sido, para muitos, a única forma de saber o que está acontecendo nas últimas manifestações na Venezuela e Ucrânia. Muito pouco tem chegado para nós através das mídias tradicionais. Isso só aumenta o desafio (e o perigo) em se emitir qualquer opinião: muito provavelmente, no momento em que você estiver lendo este texto, os quadros sociais nos países citados pode já ter se alterado radicalmente. Portanto, peço desculpas por qualquer nova informação que não foi levada em consideração.

No caso da Primavera Árabe, foi bem documentado que grandes redes de comunicação foram montadas graças às redes sociais. Um fenômeno novo: começou na internet e por ela se espalhou. Somente depois de um tempo é que entrou na “grande mídia”. Quem acompanhou as manifestações de junho do ano passado também pôde sentir, na ponta dos dedos, o poder político das redes sociais – alguns mais, outros menos conscientes do que se postava.

As manifestações nos fazem sentir na ponta dos dedos o poder político das redes sociais

Este texto não busca ser uma resposta a tudo isso. Que fique claro: é apenas uma breve análise, baseada em algumas das impressões que tive após acompanhar várias das relações estabelecidas entre essas novas movimentações sociais, que partiram da internet, e o exercício democrático. Com certeza, esta análise será incompleta, pois é impossível falar de todos os ângulos.

Contudo, espero que, ao final do texto, alguns apontamentos relevantes sejam levantados ao leitor que está interessado em entender como a internet está sendo utilizada como ferramenta política por nós atualmente e os desafios que os defensores de um sistema democrático (me incluo neles) terão no futuro.

Egito

The Square

Egito: um exercício da relação entre democracia e ativismo

Assisti recentemente ao documentário “The Square”, indicado ao Oscar 2014, que lida em explanar algumas das questões que estavam por trás dos protestos que aconteceram no Egito, entre 2011 e 2013. O caso lá retratado parece ser uma boa ilustração da relação entre os conflitos dos modelos de discussão virtuais e as possibilidades de ações efetivas no campo prático.

Em um primeiro momento, diversos grupos egípcios, insatisfeitos com o regime do então presidente Hosni Mubarak, no cargo já há 30 anos (eleito, em todas as ocasiões, sem oposição), uniram-se em prol da derrubada do seu líder, levantando velhas acusações sobre a falta de espaço democrático em seu governo. As manifestações, que se concentravam na Praça Tahir, no Cairo, após uma série de enfrentamentos com o exército, acabaram por ser bem-sucedidas. O presidente foi deposto e uma eleição foi marcada.

Contudo, o fator icônico do caso egípcio não foi, ao meu ver, o sucesso na derrubada do presidente, mas sim o que ocorreu nas eleições. Como é mostrado no documentário, um dos grupos de grande presença nas manifestações, a Irmandade Muçulmana, acabou por criar alianças com o exército e, através de acordos políticos, viu-se capaz de lançar um candidato à presidência nas eleições vindouras.

“The Square” ilustra a relação entre os conflitos de discussões virtuais e as possibilidades de ações efetivas

Em “The Square”, é mostrado um descontentamento por boa parte da população pelo fato de que as eleições, no segundo turno, seriam disputadas entre duas frentes: uma representada por Ahmed Shafiq, ex-primeiro ministro do regime de Mubarak, e outra pela Irmandade Muçulmana, representada por Mohamed Morsi. A discordância por parte dos manifestantes é bem retratada no filme. Nenhum dos dois candidatos parecia atender às demandas que pediam pela formulação de uma nova Constituição.

The Square

Egito

O resultado é conhecido: Morsi foi deposto pelos militares em 2013, um ano após seu mandato, tendo em vista que não foi capaz de controlar novas manifestações (cada vez mais violentas) e agora o Egito prepara-se para, pela segunda vez na história, ter novas eleições livres, que deverão ocorrer até abril.

O que nos chama a atenção no caso egípcio é que após forte atuação política, de grande repercussão mundial, e com importantes avanços na direção de uma ampliação dos poderes de participação popular, o cenário montado no momento das eleições foi insatisfatório para muitos por causa do próprio sistema. Devia-se exercer o voto, pois foi um direito adquirido com luta, mas a escolha resumia-se em dois personagens que chegaram ao topo muito devido a alianças políticas, e não necessariamente por representarem as demandas populares dos manifestantes.

Ainda assim, mesmo com alto grau de insatisfação pelo resultado das eleições, é necessário questionarmos acerca da possibilidade de que boa parte da população poderia estar satisfeita com Morsi como presidente – ou, até mesmo, com o regime de Mubarak. Coloco este questionamento em prol de uma pergunta que acredito ser central neste texto: até que ponto um regime democrático deve levar em consideração manifestações de caráter popular, por mais barulhentas que sejam, se elas não representarem a maioria da população?

Não posso dizer que esse foi o caso do Egito. Pelo que pesquisei, acredito que a insatisfação era geral, tanto no caso de Mubarak quanto com Morsi. Colocando meu questionamento anterior de outra forma então, a pergunta que desejo fazer realmente é:

Quem fala mais alto tem maior voz?

kiev11

Kiev

Ucrânia e Venezuela: Exposição x Democracia

Não sei quanto a vocês, mas meu Twitter e Facebook estão inundados diariamente com imagens acerca das manifestações que estão ocorrendo nesses países recentemente. É difícil não se sentir perdido. Corre-se atrás de informações e há muito pouco em português. Quase nenhum da Ucrânia. Tem sorte quem entende inglês e pode ver o que alguns jornais europeus falam sobre o assunto. Mas as imagens proliferam. Algumas parecem ter sido tiradas de um filme de terror pós-apocalíptico.

No caso da Venezuela, pipocam, aqui e ali, relatos de conhecidos nossos que residem lá. Nos últimos dias, ouvi de um espectro a outro: desde pessoas que dizem que está ocorrendo uma tentativa de um golpe de elite da direita (e a prova disso seria que as manifestações estariam ocorrendo nas regiões ricas de Caracas) até pessoas que dizem que há grande insatisfação com o governo de Maduro, que seria marcado por uma restrição das liberdades políticas dos cidadãos venezuelanos.

Comentários sobre possível financiamento dos EUA para os grupos de manifestantes também surgem por vários lados. O interesse dos EUA nesse caso seria o petróleo.

No caso da Ucrânia, vejo que há uma grande insatisfação crescente desde novembro do ano passado, quando o então presidente Yanukovich decidiu estreitar relações comerciais com a Rússia ao invés de aproximar-se da União Européia. Relatos de corrupção de seu governo são frequentes, desde 2004, quando ganhou as eleições presidenciais mas foi impedido de assumir o posto, dada a quantidade exorbitante de denúncias.

A aproximação com a Rússia fez surgir um sentimento de regresso aos tempos de União Soviética e grande parte da população decidiu demonstrar sua insatisfação. Contudo, aqui vem um fator curioso: a maioria da população estava inclinada para o acordo russo, sendo que os que prezavam pela aproximação com a UE representava cerca de 43% do país. Bastante gente, mas não a maioria.

Kiev

Kiev

Isso é compreensível, tendo em vista que a Ucrânia é um país com uma formação geopolítica muito complexa. As fronteiras se alteraram muito nos últimos 300 anos e grande parte da população fala russo. Ou seja, há maior identificação com a Europa Oriental do que com a face Ocidental. Para saber mais sobre isso, recomendo este texto do Washington Post (em inglês) que tiram algumas dúvidas sobre as configurações sócio-políticas ucranianas e como elas são determinantes nas atuais manifestações.

De qualquer forma, em um regime democrático, a decisão de aproximação à Rússia, tomada por Yanukovich, não seria errada, sendo que a maioria da população aceitava sua decisão. Ao menos teoricamente, esse princípio funciona.

O erro fatal de Yanukovich, segundo alguns especialistas, daria-se em 16 de Janeiro deste ano, quando já em clima de diminuição das manifestações, em sua grande maioria pacíficas até então, o presidente assinou uma lei “anti-protesto”, que restringia os poderes de liberdade de expressão da população e da mídia – especialmente quando a pauta visava critica ao governo. Ao atacar a liberdade de expressão de um povo, aliado às acusações de corrupção, um sentimento de vingança surgiu, e a arena armou-se.

Notem: nos dois casos – Venezuela e Ucrânia – a internet foi essencial. Primeiro pela divulgação de imagens de violência, depois pela disseminação de notícias. Em especial, um vídeo de uma ativista ucraniana, no qual ela falava sobre a situação do país e os motivos pelos quais eles estavam indo para as ruas, viralizou, e o mundo passou a olhar com mais atenção o que estava acontecendo.

Na última quinta-feira, dia 20 de fevereiro de 2014, fotos mostrando os últimos desfechos dos conflitos em Kiev, capital da Ucrânia, chocaram muitos internautas brasileiros.

Ao atacar a liberdade de expressão de um povo, aliado às acusações de corrupção, um sentimento de vingança surgiu

Para engrossar ainda mais esse caldo, obviamente começaram a surgir as teorias da conspiração. Assim como no caso da Venezuela, em que alguns dizem que os EUA está financiando manifestantes por interesses econômicos próprios, o mesmo tem ocorrido no caso da Ucrânia.

Teorias de que os manifestantes são representantes de grupos de interesse comercial do bloco ocidental, que buscam uma desestabilização calculada do cenário político ucraniano para que possam ter uma maior entrada, começaram a surgir recentemente, e ficamos em uma balança confusa: seria isso um jogo de interesses calculados de países investidores, que veem na Ucrânia e na Venezuela algum potencial lucrativo, ou seria isso uma manobra de outros grupos de interesses que visam deslegitimizar um genuíno interesse por mudanças sociais nestes locais? A resposta é um grande ponto de interrogação. Nenhuma resposta é 100% garantida. E isso também ocorre por aqui.

Praça da Independência em Kiev: Antes e Depois

Praça da Independência em Kiev: Antes e Depois

Manifestações no Brasil – Democracia como estética

Nos casos da Ucrânia e do Egito, chama a atenção o fato de que boa parte dos manifestantes reclamam que não se veem representados nas altas esferas do poder. Ao organizarem-se através de redes sociais, unem suas indignações à retomada da consciência de que seu poder nas ruas é gigantesco. Um cenário único surge na combinação desses elementos: politiza-se ao máximo o campo virtual e percebe-se uma crise no modelo de democracia representativa.

Fruição estética: Parecia ser mais importante estar nas ruas, e postar fotos e vídeos de se estar lá, do que necessariamente ter reivindicações aos governantes

Interessante perceber que se há algum tempo a crença geral era de que a internet deixaria-nos mais acomodados ou submissos, naquele velho chavão de “estou em contato com o mundo, ao mesmo tempo em que estou isolado em meu quarto”, o cenário claramente se tornou outro. Acredito que nem mesmo os mais entusiastas do poder político que a internet oferecia nos anos 90, como o teórico Pierre Levy, conseguiram imaginar as proporções que a combinação entre “ativismo virtual” e “insatisfação política” tomariam nesta segunda década do século XXI. Contudo, uma pergunta é necessária neste momento: que tipo de atitude política essas manifestações estão representando?

Para poder falar com alguma segurança (ainda que pouca, pois, novamente, é difícil generalizar nesses casos), vou tratar um pouco do caso brasileiro. Uma desconfiança que tenho a respeito das manifestações que ocorreram ano passado aqui no país é a de que os atos eram políticos, mas com alto grau de fruição estética. Explico: parecia ser mais importante estar nas ruas, e postar fotos e vídeos de se estar lá, com uma curiosa sensação de “estou fazendo história”, do que necessariamente ter reivindicações aos governantes.

Brasil

FIFA

O resultado foi o que vários especialistas na época já apontavam: diluição dos interesses, agendas conflitantes por vários grupos, confusões sobre o que estava sendo exigido e, por fim, nivelamento ao mínimo denominador comum de todos que lá atuavam. Tornaram-se então recorrentes lugares-comuns como “fim da corrupção”, “segurança, educação e saúde”, “fora Fifa” e por aí vai. Muitos “o que”, poucos “como”.

Concordo que a falta de líderes foi um agravante. Contudo, a presença de um (ou alguns) poderia ter um efeito reverso: provavelmente, no caso de uma figura central (e houve tentativas de formar-se algumas), agendas políticas de outros grupos não se sentiriam representadas e as manifestações acabariam mais rapidamente. O efeito foi o mesmo – as grandes manifestações cessaram –, mas de forma mais vagarosa.

Por outro lado, os grupos que tinham suas agendas e líderes melhor definidos acabaram por persistir até hoje, em manifestações muito menores mas, ainda assim, de relevante impacto. O lamentável caso da morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, ocorreu justamente em uma manifestação cuja agenda é uma das originárias das revoltas de junho: o aumento do preço da tarifa de ônibus. Dessa vez, não em São Paulo, mas sim no Rio de Janeiro.

Lugares-comuns como “fim da corrupção” e “fora Fifa”. Muitos “o que”, poucos “como”.

Apesar de concordar que a falta de líderes foi um agravante para que algumas das demandas do ano passado não tomassem formas mais sólidas (uma que tinha grande potencial, ao meu ver, foi a necessidade de uma reforma política – assunto que, infelizmente, não foi para frente), acredito que o quadro geral é ainda mais complexo.

Rio de Janeiro

Brasil

O conceito da necessidade de um líder que represente as demandas de um grupo de insatisfeitos é um dependente do modelo de democracia representativa – que, como podemos ver atualmente em casos como o do Egito e da Ucrânia, parece não ser suficiente para atingir as demandas do povo. Parece-me, neste caso, que há um descompasso entre dois fatores: a sensação de vertigem que temos com os rápidos meios de consumo e comunicação entram em conflito com a lentidão da máquina burocrática estatal.

Ao não ver-se representado lá em cima, uma parte da população se revolta e vai à desforra, organizando-se de maneira rápida nos meios virtuais, mas vendo suas agendas (mesmo as definidas) diluírem-se nos complicados trâmites burocráticos dos lugares onde vivem. A pergunta que fica, nesse breve levantamento, poderia ser “é possível um Estado satisfazer, em tempo hábil, as demandas de toda uma geração que está acostumada a receber mensagens instantâneas, baixar filmes recém-lançados no cinema e ter produtos entregues em até 24 horas na sua casa?”.

A possibilidade do modelo de democracia representativa parecer dar seus sinais de crise não significa, de maneira alguma, que a democracia como um todo estaria vendo seus dias finais. Não acredito que seja esse o caso. Contudo, há de se repensar o modelo de participação democrática.

Sobre isso, recomendo a entrevista que sociólogo polonês Zygmunt Bauman, cuja extensa obra é bem conhecida no Brasil, concedeu ao Fronteiras do Pensamento em 2011. Nela, Bauman levanta a necessidade de repensarmos o que entendemos por Democracia nos dias de hoje, tendo em vista que seu conceito, originário dos gregos antigos, altera-se à medida que os anos passam.

Como ela deverá ser daqui pra frente? Não acredito que o modelo islandês, reformulado recentemente para um sistema de democracia direta, em que todo cidadão, através da internet, participa diretamente das decisões do governo, seja possível num país de dimensões continentais como o Brasil.

Posso estar enganado (e espero estar), mas quero deixar claro que acredito ser importante não nos deixarmos seduzir por aparentes soluções “fáceis”, do tipo que vemos em alguns grupos que vivem uma estranha nostalgia dos tempos da Ditadura Militar brasileira (mesmo sem terem vivido aquela época). Aliás, importante mencionar que tenho plena consciência de que o período militar brasileiro não é dos mais simples de se entender, seja pelo lado dos que são contra, seja pelo lado dos que são a favor.

Descompasso: os rápidos meios de comunicação entram em conflito com a lentidão da máquina burocrática estatal

Acima de tudo, acredito que apostar que as coisas “serão melhores” se nosso poder de decisão for retirado, deixando o poder na mão “de quem (supostamente) entende”, é uma ideia perigosa. Por mais complicado que seja, a participação popular é um direito adquirido valiosíssimo. Resta sabermos qual a maneira “menos pior” de pô-la em prática, especialmente frente os desafios deste novo mundo.

Mesmo com todas essas considerações, o terreno de formações de opiniões seguras sobre todos os ocorridos por aqui é ainda pantanoso. E muito disso, acredito, deu-se por um movimento duplo que a internet possibilitou: se por um lado aumentou-se o debate político, por outro lado aumentou-se as paranoias e as teorias conspiratórias.

Brasil

Kiev

Conspirações por todos os lados!

Já citei sobre a questão das conspirações (ou “fatos”, dependendo do que você acredita) nos recentes casos da Venezuela e Ucrânia, e cheguei a mencionar que aqui não estamos longe disso. No caso do cinegrafista morto, não faltaram as explicações e desconfianças acerca de como a polícia solucionou rápido o crime. Supostas ligações dos grupos Black Blocs com partidos políticos também foram mencionados. Debates interessantíssimos sobre a diferença entre violência policial e urbana têm surgido. E, com todos esses fatores, o buraco tem ficado cada vez mais fundo. Aliás, os buracos. Sei lá em qual você prefere se enfiar.

No caso das revoltas de junho do 2013, tenho uma clara lembrança das minhas impressões de motivos pelos quais elas aparentemente não foram tão efetivas quanto prometiam ser. Primeiro: quando as revoltas estavam estourando ainda apenas em São Paulo, houve o momento em que os principais veículos de informação do país referiam-se aos manifestantes como “vândalos”. Isso mudou, aparentemente, após a fotógrafa da Folha de São Paulo levar uma bala de borracha na cara. Isso fez a classe de jornalistas se mexer e, do dia para a noite, os “vândalos” se tornaram “manifestantes”.

Quando uma jornalista foi atingida por uma bola de borracha, a abordagem mudou: Os “vândalos” se tornaram “manifestantes”.

Em seguida, as manifestações cresceram exponencialmente e o lema “não é só pelos 20 centavos” ganhou dimensões nacionais. O Arnaldo Jabor se desculpou por uma declaração que havia feito criticando os manifestantes no Jornal da Globo. É curioso que ele o tenha feito na sua coluna da CBN, onde seu poder de persuasão parece ser mais contido, mas vamos considerar isso como válido, pelo menos por enquanto.

Com o crescimento das manifestações, aumentaram os atos de vandalismo. E uma coisa chamou a atenção de muitos que acompanhavam as notícias: o fato de que os grandes meios de comunicação tratavam de enfatizar que os atos de violência eram de “pequenos grupos localizados”, e não de todos os manifestantes – que seriam, segundo as notícias da época, em sua maioria pacíficos. Para muitos, teriam sido esses atos de vandalismo que acabaram por enfraquecer o caráter político e o potencial das manifestações. Mas eu tenho outra impressão.

Black Blocs

Para quem está tentando se informar sobre o assunto, não há lado seguro para correr. Medo e dúvida são sensações frequentes.

Enquanto a grande mídia se preocupava em tentar “higienizar” as manifestações, deixando claro que os “mal-elementos” não eram a maioria, movimentos que só posso caracterizar como paranóicos passaram a crescer mais e mais nas discussões virtuais. Eu li/ouvi relatos, tanto da esquerda quanto da direita, de que estariam se instalando estratégias para um golpe de Estado.

Do lado da esquerda, li/ouvi que grupos fascistas passaram a integrar as manifestações e causar vandalismo para tentar legitimizar um novo golpe militar em um cenário que beiraria uma guerra civil, dando espaço, nestas configurações, para que o exército atuasse livremente. O termo “P2”, referente ao policial infiltrado no meio dos civis, tornou-se jargão (e muitas vezes coerentes, como pudemos ver em vários vídeos da época).

PM

Do lado da direita, li/ouvi que grupos anti-capilistas (como os Black Blocs) estavam tentando instaurar um golpe comunista, e que o cidadão deveria ter cuidado para que isso não ocorresse. Nas recentes manifestações, ainda ouço bastante isso.

Quero deixar claro que, sim, estou generalizando ambos os lados. Houve outras versões, ora mais brandas, oras mais radicais, mas a palavra “golpe” era (e ainda é) recorrente nas duas vertentes. Para aquele que estava tentando informar-se sobre o assunto, não havia lado seguro para correr. Medo e dúvida eram as sensações frequentes da época. No meio de tudo isso, alguém proferiu a frase “quem não está confuso não está bem informado”, que acredito que resumiu bem o espírito do período final das manifestações de Junho de 2013. Honestamente, não sei em quem acreditar até hoje. Acho muito difícil que houvesse tais tentativas golpistas, mas também não descarto a possibilidade. De todos os lados.

Uma questão que levantei há pouco, e que acredito ser relevante para amadurecermos na discussão do cyberativismo aliado à presença nas ruas, é a seguinte: até que ponto o ato de violência na manifestação é válido num país democrático? Aliás, é válido? Se sim, contra o quê? Contra quem? Não iria ele contra o próprio conceito de democracia? Imaginem o seguinte: um grande grupo de pessoas está insatisfeito com medida X do governo. É um grupo grande, mas não é a maioria. Digamos que, nessa situação hipotética, seja 30% da população – o que já é o suficiente para causar algum estrago. Se esses grupos começam a causar muito barulho nas ruas, o governo deve ceder aos seus interesses?

Kiev

E se a minoria fosse mais barulhenta em suas ações? Tanto nas ruas quanto online, divulgando para o mundo vídeos, fotos e textos que provassem seus pontos de vista?

Pensemos, por um momento, no caso do Egito e da Ucrânia. E se, hipoteticamente, 60% da população egípcia estivesse satisfeita com o governo de Mubarak, mas os outros 40% fossem mais barulhentos em suas ações – tanto nas ruas quanto online, divulgando para o mundo vídeos, fotos e textos que provassem seus pontos de vista. O que fazer nesse caso? Quem está certo? Como deve o governo agir?

O mesmo vale para a Ucrânia: dada sua complexidade cultural, lembremos que, ao menos em primeiro momento, a maioria da população (57%) era a favor do acordo comercial com a Rússia. Contudo, a parcela que era contra (43%) era mais assertiva e foi para as ruas. Ou seja, “mostraram-se” mais e fizeram suas vozes serem ouvidas. Depois dos desastres políticos do presidente com as medidas anti-protestos, obviamente o cenário se alterou.

O resultado foi uma inundação de imagens e vídeos que mostram Kiev como um campo de batalha. E de que lado ficamos? Como escolher um lado? Como se dá o exercício democrático em um mundo no qual as pressões internacionais podem passar a surgir devido a imagens compartilhadas no twitter por um celular, eventualmente viralizando? E se lermos as teorias da conspiração? Devemos desacreditar todas? Ou apenas algumas?

Neste cenário de manifestações acontecendo a todo momento, em todo o mundo, exigindo movimentos políticos mais rápidos do que a máquina estatal é capaz de produzir, aliado à proliferação de teorias da conspiração que surgem para todos os lados, é impossível não sentirmos, em algum momento, uma desesperadora sensação de não saber mais o que pensar.

É aí que reside minha hipótese de porquê muitas dessas manifestações parecem não sair do lugar: por mais bizarro que isso soe, parece-me que há um excesso de informação que engessa qualquer possibilidade de posicionamento construtivo acerca dessas difíceis questões. A cada nova informação, dez novas dúvidas surgem.

Kiev

Um paradoxo marca nossa geração de maneira tragicômica: nunca estivemos tão informados e perdidos ao mesmo tempo

Se eu quisesse arriscar um pouco mais, diria que as teorias da conspiração parecem denotar duas coisas sintomáticas de nossos tempos. Em primeiro lugar, o velho chavão de que temos, hoje, a necessidade de termos opinião formada sobre tudo, por mais rasa que ela seja. Em segundo lugar, de que há uma estranha sensação de que, no caso dos conspirólogos de plantão, há uma necessidade de mostrar-se mais “consciente” do mundo.

Ao formular-se uma teoria de interesses ocultos por trás dos movimentos sociais, o dono de tal discurso destaca-se da “massa”, reivindicando para si mesmo um suposto título de “esclarecido”. Para os que se encaixam neste último caso, gosto de lembrar do documentário “The Mindscape of Alan Moore”, no qual o autor supramencionado diz que os conspiradores falham em entender que o mundo é caótico e sem sentido. Por não aguentarem o peso da complexidade do mundo, acabam por formular explicações para tudo, sempre referenciando grupos de interesses malignos.

like

Não quero dizer com isso que não existem grupos de interesse que formulam estratégias e ações assertivas contra padrões sociais estabelecidos. A história está cheia de exemplos em que isso foi o caso. Contudo, ao ver que há tantas conspirações para todos os lados, não consigo deixar de pensar que há muitos equívocos aparecendo por ai. E essas hipóteses, que supostamente deveriam tornar-nos mais conscientes, acabam jogando mais ruído do que se esperava.

Sendo assim, um paradoxo marca nossa geração de maneira tragicômica: nunca estivemos tão informados e perdidos ao mesmo tempo. Tempos desafiadores para aqueles que se arriscam a pensar criticamente sobre o mundo – tanto o seu quanto o do outro. E podem esperar: a tendência é complicar cada vez mais. Resta adaptarmo-nos a este confuso novo mundo e sabermos lidar com seus novos desafios.

Se há algo positivo nisso tudo é que estamos, talvez pela primeira vez na história, experimentando em larga escala a complexidade do tecido social – que sempre foi complicado, mas nunca dava chance às vozes periféricas serem ouvidas. Não é mais necessário ser um acadêmico ou político para entendermos essa colcha de retalhos que parece ser o mundo. Basta abrir sua rede social de preferência. E ainda bem que estamos assim.

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Créditos Fotos: Mohamed Elsayyed/Shutterstock.com; Jorge Silva/REUTERS; Hassan Ammar/AP; AlexandCo Studio/Shutterstock.com; Antonio Scorza/Shutterstock.com; Sergei Supinsky/AFP; S-F/Shutterstock.com; Roman Mikhailiuk/Shutterstock.com

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Woody Allen: É possível separarmos a obra de arte do artista?

Recentemente, vimos a carta Dylan Allen, filha adotiva de Woody Allen quando casado com Mia Farrow, na qual ela confirmava que seu pai havia abusado dela quando criança. Textos ora a favor de Dylan, ora duvidando, pipocaram por toda a internet. Não vou entrar nos detalhes do caso. Quem quiser, recomendo a leitura desses dois textos: a carta aberta de Dylan sobre o assunto e este texto de Robert B. Weide, responsável por um documentário sobre Woody Allen que foi ao ar nos EUA pela emissora PBS. No texto, Weide explica uma série de fatores que colocam em dúvida as acusações (ambos os textos estão em inglês).

O que mais me chamou a atenção no retorno da polêmica, que teoricamente já foi resolvida em 1993, quando Woody Allen foi absolvido pela corte americana, foi a quantidade de fãs dele se questionando “e agora, devo (ou posso) continuar fã?”. Certamente, ninguém quer correr o risco de ter sua reputação misturada a de um suposto pedófilo, simplesmente porque gosta dos filmes dele.

Mas será que tal associação, mesmo que feita de forma involuntária, é justa? Até que ponto devemos fazer tais questionamentos? Esse é um dos mais mais frequentes debates no campo artístico, e Woody Allen não foi o primeiro a ser objeto de tais dúvidas. Com certeza, não será o último. Este texto é uma infame tentativa de resposta para o dilema.

Woody Allen no set de "Match Point" (2005)

Woody Allen no set de “Match Point” (2005)

Qual a importância do autor?

Quando Roland Barthes, semiólogo francês do século passado, escreveu seu famoso texto “A Morte do Autor”, de 1967, ele desenvolvia uma posição provocadora: em contato com uma obra, a única coisa que importa é o leitor. Seu ensaio era voltado especialmente a uma corrente de crítica literária muito comum em seu tempo, na qual buscava explicar obras publicadas a partir da biografia de seus autores.

“E agora, devo (ou posso) continuar fã?”

Segundo Barthes, a obra literária possuiria uma vida independente da vida do autor que a escreveu, sendo então o resultado de leituras, recepções e interpretações diversas no meio social. Nesta perspectiva, definir a qualidade ou alcance de uma obra partindo da limitação da vida do criador da mesma seria inconsistente. Para os curiosos, discutimos essa questão de Barthes no AntiCast 37.

Woody Allen

Eu tendo a concordar com Barthes nesse ponto. Apesar de achar que o conhecimento sobre a vida do autor pode ajudar a um maior esclarecimento sobre detalhes de determinadas obras, quando vou à livraria ou ligo a TV para ver um filme, especialmente se for algo pouco conhecido, não me importa quem é o realizador. Caso o trabalho me chame a atenção, só então corro atrás para saber quem é o escritor, diretor, ator, e qualquer outro “or” (ou “ora”).

Mas, claro, esse não é o caso de Woody Allen. Seu nome é uma assinatura valiosa. Quem é fã, assistirá seu próximo filme sem pestanejar. Quem é simpatizante, poderá dizer que gosta de seus filmes e verá se tiver a oportunidade. E há sempre aqueles que nunca sabem o nome do diretor, e se surpreendem quando descobrem que o diretor de “Noivo neurótico, Noiva Nervosa” é o mesmo de “Meia-Noite em Paris”.

Trocando em miúdos: o nome Woody Allen vende, mesmo em seus filmes menos conhecidos. É um daqueles diretores de público fiel, uma aposta segura para os estúdios. Você com certeza consegue pensar em outros artistas que possuem o mesmo “selo de qualidade”, seja no cinema, na música, na literatura etc.

Claro, sempre há excessões. Um caso recente, no caso de Woody Allen, foi a fraca recepção ao “Para Roma com Amor”, em 2012, provavelmente por causa da alta expectativa causada após o sucesso que foi “Meia-Noite em Paris”. Ainda assim, seu nome continua forte.

Não estou falando nenhum novidade, mas o curioso é perguntarmos “será que o nome do artista sempre teve essa importância?”. A resposta é não.

Woody Allen

Quando surgiu o artista como um nome?

Recentemente, um colega meu, o professor Rodrigo Graça, do curso de design da UTFPR, foi a Paris e postou uma constatação curiosa:

“A disciplina de História da Arte (HA) poderia se chamar marquetingue (sic), ou HA é um protomarquetingue. O culto as obras primas e o endeusamento do indivíduo, na figura do artista criador, é evidente em Paris. Lugares como o Louvre, o d`Orsay e a l`Orangerie tem filas absurdas, enquanto lugares como o Petit Palais e o Musée Centre du Patrimoine et de L`Architecture com excelentes exposições e, em janeiro de 2014, com exposições temporárias sobre Jordaens e sobre o Art-Deco respectivamente, estão vazios; vazios mesmo, sem filas, sem salas cheias, sem atropelo…”

Se pegarmos qualquer livro de história da arte, ao menos os mais famosos (tipo aquele Gombrich que você tem juntando pó na estante de casa), veremos que eles são recheados de nomes. Contudo, os nomes passam a surgir com mais frequência apenas a partir do Trecento, ou o chamado Pré-Renascimento, que marca a transição da Idade Média para a Idade Moderna, no século XIV. Alguns nomes que aparecem nesse período, apenas a título de curiosidade, são Giotto, Domenico Di Bartolo, e Ambrogio Lorenzetti.

Art

O que quero dizer com isso? Por toda a Idade Média, com raríssimas exceções, os artistas que lidavam com artes manuais (esculturas e pinturas) não tinham grandes preocupações com autoria (ou, se tinham, eram contidos). Eram considerados prestadores de serviço, numa configuração determinada pela mentalidade medieval que declarava que toda capacidade de produção deveria ser em prol da representação religiosa. Não à toa, a assinatura do artista em suas obras é uma das marcas que assinalam o fim da Idade Média.

Não desejo entrar aqui nos méritos ou deméritos da mentalidade religiosa medieval e sua relação com a produção artística. Quero apenas enfatizar essa característica. Importante notarmos também que, no caso das artes de cunho intelectual, tal como música e poesia, a autoria foi mais levada em consideração. Os primeiros artistas plásticos do Renascimento, sendo frutos de um momento histórico de intensas revoluções culturais, são responsáveis por uma mudança de mentalidade da sua época: a luta pela valorização das artes manuais, de forma a mostrá-las como também oriundas de um intenso esforço intelectual. Por consequência, seus nomes passaram a ser importantes. Viu-se surgir a uma economia de reputações baseada na excelência de seus trabalhos.

Os ícones máximos do Renascimento, Leonardo da Vinci e Michelangelo, são exemplos claros disso. Da Vinci era conhecido como um artista excelente, mas que demorava demais para entregar suas encomendas, dado seu zelo com a qualidade do trabalho. A Monalisa mesmo, sua peça mais famosa, nunca foi entregue ao cliente, e estima-se que ele trabalhou nela por mais de 10 anos. Michelangelo era famoso por confrontar seus clientes, dizendo que eles não entendiam nada de arte e que deviam deixá-lo trabalhar em paz, pelo tempo que fosse necessário. E, claro, se deixassem de pagar, o trabalho era encerrado. Que sonho para criativos de hoje, não?

Por toda a Idade Média, com raríssimas exceções, os artistas que lidavam com artes manuais não tinham grandes preocupações com autoria

Os nomes dos artistas carregavam consigo reputações acerca da qualidade de sua obra, seu método de trabalho, seus preços, entre tantas outras informações. Com a difusão das galerias na Europa a partir do século XVIII, os nomes dos artistas passaram a ser ainda mais importantes. Quanto mais admirado fosse, maior seriam as visitas e as ofertas pelas suas obras expostas. Essa mesma lógica ganhou ainda mais força no mercado literário europeu do século XIX, quando vemos a proliferação do Romance (narrativa longa em prosa) como produto bastante consumido pela classe burguesa. É a época na qual os primeiros bestsellers passam a surgir.

Claro, há mais coisas a serem contadas nessa questão da formação histórica da importância do nome do artista. Poderíamos falar sobre as assinaturas dos pintores em suas telas, dos nomes dos escritores nas capas de livros, ou ainda da construção da idolatria aos diretores de filmes pelo fato de colocarem seus nomes nos créditos iniciais, dando assim a ideia de que ele é a figura mais importante na realização do filme.

Hitchcock é marcante nesse sentido, pois foi um dos primeiros diretores dos EUA a transformar seu nome em um selo de qualidade que vendia o filme com algum respaldo. Fato curioso: se olharmos, na mesma época, para a União Soviética, que desenvolvia sua indústria cinematográfica mais ou menos ao mesmo tempo em que o cinema de Hollywood está amadurecendo, o nome que tinha mais destaque nos créditos de abertura era o do roteirista, e não o do diretor. Podemos deduzir daí que a própria noção de autoria é determinada pelas condições sociais nas quais a obra artística é criada.

E isso me faz retomar a frase que citei do meu amigo há pouco. Até que ponto, hoje, estamos consumindo obras de arte e até que ponto estamos consumindo o artista? Há diferença? E, caso sim, qual é o mais importante?

Bale

Famosos “Podres”

Espero ter demonstrado, ao menos brevemente, o autor nunca foi algo muito importante pela esmagadora maior parte da história da humanidade. Passou a ser importante quando surgiu um mercado que consumia não apenas mais a obra, mas sim o nome atrelado a ela. No caso das artes plásticas, gosto de localizar esse momento no Renascimento – como na famosa Pietá, de Michelangelo, única obra sua que leva a assinatura do autor.

No caso das artes ditas “intelectuais” (música e poesia), podemos remontar aos gregos e romanos da antiguidade clássica – ainda assim, com uma série de restrições. A obra sempre foi mais importante do que o artista. Mas o tempo passa e, com ele, obviamente, as formas de nos relacionarmos ao ambiente em que estamos inseridos. Por isso, a pergunta torna-se pertinente.

Picasso era misógino. Caravaggio assassinou um homem. Rimbaud era contrabandista. Lorde Byron cometeu incesto, enquanto o escritor Flaubert pagava por sexo com garotos.

Há um excelente artigo do NY Times, assinado pelo crítico de arte Charles McGrath, chamado “Good Art, Bad People”. Recomendo a leitura do artigo e usarei parte dele para responder a pergunta que dá nome a este post. Vamos, então, à lista dos podres de artistas famosos.

Um ponto recorrente em vários artistas é o anti-semitismo. Neste caso, a lista é gigantesca. O compositor clássico Wagner, aquele que compôs a marcha nupcial, é um dos casos mais famosos nessa lista. Acompanham-no neste caso o pintor Degas, os poetas Ezra Pound e T.S. Eliot, além de Walt Disney e Mel Gibson.

Uma provocação: você acha que, ao tocar a marcha nupcial em seu casamento, você torna-se um anti-semita por tabela? E quando vê um filme da Disney ou um filme estrelado/dirigido por Mel Gibson?

Picasso era misógino. Caravaggio assassinou um homem. O poeta Rimbaud era contrabandista. Outro poeta, Lorde Byron, cometeu incesto, enquanto o escritor Flaubert, autor do clássico “Madame Bovary”, pagava por sexo com garotos (em tempos em que isso era um crime grave). Charles Dickens era um péssimo pai e marido, assim como Hemingway. John Lennon entraria nesse mesmo caso, especialmente quando pensamos no seu primeiro casamento, com Cynthia Powell, no qual teve seu primeiro filho, Julian.

Frank Miller, autor de quadrinhos que escreveu obras de inestimável valor, como “Batman Ano Um”, “Batman: Cavaleiro das Trevas”, “Elektra: Assassina”, entre tantas outras, é conhecido hoje por fazer comentários de alto teor racista a respeito de muçulmanos nos EUA.

Arthur C. Clarke, famoso escritor de ficção científica, autor de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, recebeu sérias acusações de praticar pedofilia no final dos anos 90. As acusações foram, aparentemente, infundadas. Contudo, na época, muitos ligaram o fato dele residir no Sri Lanka, país com sérios problemas na questão de preservação dos direitos humanos, aos seus possíveis hábitos sexuais.

Roger Waters, ex-líder do Pink Floyd, também foi chamado de anti-semita no ano passado, por ter feito críticas duras ao governo de Israel. Ele se defendeu, dizendo que não estava criticando o povo judeu, mas sim o Estado de Israel. Independente do que quis dizer, a repercussão de suas críticas não foram das mais favoráveis.

Aliás, se formos para a música, teremos uma lista incontável, com os mais variados delitos. Axl Rose (e outros membros do Guns N Roses) confessaram que vendiam drogas antes de se tornarem famosos. Richie Blackmore, fundador do Deep Purple, era (e possivelmente ainda é) um babaca. Morrissey, fundador do The Smiths, já soltou declarações racistas para meio mundo. E se entrarmos no assunto “infidelidade”, esse post não terá fim.

Enfim, a impressão que tenho é que os “podres” dos artistas parecem só ter importância quando eles são próximos de nós, a ponto dessas manchas em suas histórias terem sido esquecidas pelo tempo. A pergunta que poderíamos fazer é “devemos esquecê-las”? Não acho que seja o caso. Contudo, não consigo também deixar de acreditar que a obra do artista continua sendo mais importante que sua figura. Todos morremos – algumas obras sobrevivem.

Sendo assim, apesar de condenar muitas das atitudes que listei aqui, não sei até que ponto é possível “higienizarmos” toda nossa biblioteca de livros, músicas e acervo de gostos artísticos em geral. Imagine a situação: para cada banda nova legal que ouço na rádio, procuro no Google sobre o passado dos artistas, para ver se eles merecem ou não minha atenção. Isso me parece inviável e, até certa medida, paranóico. Talvez seja mais saudável lembrarmos do clichê “de perto, ninguém é santo”. Nem você.

Woody Allen

É possível separarmos a obra de arte do artista?

Sim, é possível e desejável. A obra de arte, especialmente aquela que sobrevive ao teste do tempo, é sempre mais potente do que o seu criador, seja no meio que for. Gosto de lembrar de Barthes neste momento e pensar que o que define a obra não é seu criador, mas sim o que fazemos com ela. Sei que essa resposta pode parecer covarde, como uma tentativa de isentar o autor de qualquer crime que tenha cometido no passado, mas realmente penso que é esse o caso.

Acho difícil que os Beatles, ao escreverem “Helter Skelter”, imaginavam que Charles Manson aconteceria. O mesmo vale para Salinger, e seu “Apanhador no Campo de Centeio”, no que se refere a Mark Chapman, o assassino de John Lennon. O verdadeiro perigo encontra-se no receptor da obra, e não nela em si – por mais perverso que tenha sido seu idealizador. Com isso, espero já ter destruído aquela noção simplista que você aprendeu em aulas de teoria da comunicação, na qual existe o emissor de uma mensagem e um receptor passivo, que só recebe a informação. O receptor é tão ativo quanto o transmissor. Às vezes, mais.

Outra questão é importante de ser levantada: a capacidade do artista em transformar-se em um Outro. Essa é uma noção que encontramos em vários momentos na obra do teórico russo Mikhail Bakhtin, especialmente quando analisa a obra de Dostoiévski.

A função da Arte não é te tornar uma pessoa melhor. Você pode até tentar fazê-la adequar-se aos seus desejos mais egoístas, mas isso é uma decisão exclusivamente sua.

Sobre isso, lembro da vez que conversei com o escritor Daniel Galera, no AntiCast 42, e perguntei como havia sido a experiência de escrever o livro “Cordilheira”, no qual o personagem principal, que é também o narrador da obra, era uma mulher.

Naquele momento, Galera teve de se demonstrar capaz de transformar-se num Outro – no caso, um do gênero feminino. O contrário também é comum: autoras que escrevem protagonistas homens – e nem precisamos falar de situações mais malucas, como humanos que escrevem sobre elfos, monstros, anjos, demônios etc. Se o artista estivesse confinado em si mesmo, todas as histórias seriam autobiográficas. Graças à capacidade criativa dos autores, podemos garantir que este não é o caso.

Obviamente, não quero isentar ninguém aqui de culpa. No caso de Woody Allen, sou da opinião de que, se cometeu abuso a uma criança, ele deve ser responsabilizado por isso. O mesmo vale para Polanski e qualquer outro que cometa um crime – especialmente com a gravidade dos casos de cada um. Contudo, suas produções artísticas parecem ser maior do que isso, como se elas não tivessem culpa de terem surgido de pais tão ruins.

O que quero dizer, da forma mais direta possível, é o seguinte: se você é fã do trabalho de Woody Allen, isso não te torna um cúmplice de seu suposto crime. Seria preocupante se você concordasse com sua conduta pessoal. Mas o trabalho do artista, por mais que seja, de alguma forma, um reflexo de sua vivência (em maior ou menor grau), é um trabalho de criação que busca extrapolar os limites da sua própria realidade. Importante citar também que, ao menos legalmente, Woody Allen já foi inocentado pela corte estadunidense na década de 1990, como já citamos no início do texto.

Se você é fã do trabalho de Woody Allen, isso não te torna um cúmplice de seu suposto crime

Para tornarmos essas considerações um pouco mais complexas, é interessante percebermos que é possível o autor “ser um santo” (ou pelo menos parecer um) e criar ótimos vilões ou anti-heróis: o romance “Lolita”, de Nabokov, que narra a história de um pedófilo, é um desses casos. O recente filme “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, é outro. Toda a filmografia de Gaspar Noé, diretor do pesadíssimo “Irreversível”, é mais um. A lista de ótimas obras com temas horríveis é também infinita. Você pode não concordar com a atitude ou conduta dos personagens, mas isso não tira o mérito de serem boas histórias/obras, nem necessariamente exigem que se credite uma “mente doentia” ou um passado criminoso ao autor.

Caso você ainda acredite que a biografia do artista é fundamental para seu trabalho, e que um criador que tenha sua “ficha suja” deve ser ignorado pelo seu estimado “bom gosto”, eu lanço aqui uma última provocação: a função da Arte não é te tornar uma pessoa melhor. Você pode até tentar fazê-la adequar-se aos seus desejos mais egoístas, mas isso é uma decisão exclusivamente sua. E se você acredita que essa deve ser a função dela, você não a entende. Ao procurar apenas por autores higiênicos, você diz mais sobre si mesmo e sua visão de como o mundo deveria ser do que sobre as obras que recusa.

Portanto, sujemo-nos.

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Coca-Cola e o Racismo: o caso do Super Bowl

O Super Bowl acabou e, como é todo ano, uma série de propagandas de alto calibre criativo invadiu a televisão e o YouTube. Contudo, um fato que passou desapercebido por muitos brasileiros foi a repercussão da propaganda da Coca-Cola, intitulada “It’s Beautiful”, criação da Wieden & Kennedy.

O nome da peça é uma referência à trilha sonora do comercial, “America The Beautiful”, uma das mais tradicionais e patrióticas músicas da cultura estadunidense. Se você ainda não viu o post sobre o vídeo aqui no B9, podem conferir o vídeo abaixo.

Contudo, o que tomou muitos americanos por surpresa foi o fator diferencial principal da propaganda: após os primeiros versos, cantados no original em inglês, os versos seguintes são cantados em outras línguas, como espanhol, árabe, hindu, francês, mandarim, hebraico e tagalo. Eu gostaria de ser bairrista e perguntar “onde diabos está o português?”, mas tudo bem, dessa vez passa.

A Coca-Cola partiu da ideia dos EUA como um país diversificado, heterogêneo, formado por imigrantes e para imigrantes

A recepção da propaganda não poderia ser mais bizarra: enquanto alguns amaram, houve também uma enxurrada de tweets malucos de americanos indignados pela proposta da campanha. O Tumblr Public Shaming, já conhecido por compilar “vergonhas alheias” internéticas, reuniu algumas das pérolas. Recomendo fortemente que você perca seu tempo lendo, para dar umas boas risadas.

Tem de tudo: desde americanos dizendo que nunca mais tomarão o refrigerante até indivíduos super militantes, dizendo que “na América se fala inglês” – com uma grafia digna de uma criança em fase de alfabetização! A lista de tweets de pessoas que claramente não sabem a diferença entre “You’re” (“você é” ou “você está”) e “Your” (“seu”) é risível, especialmente quando são pessoas que exigem que tal música seja cantada em inglês.

Lembro que meu pai fazia uma piada, quando eu era criança. Ele dizia que nos EUA as crianças eram mais inteligentes, pois elas já falavam inglês desde novinhas. Bobeiras à parte, quando você reclama que brasileiro não sabe escrever em português (basta ver sua timeline no Facebook), saiba que isso não é só problema de ~terceiro mundo~. Mas isso é outro assunto.

America

A Coca e sua proposta Glocal

???O conceito da peça parece ir ao encontro da já conhecida proposta “Glocal” (Global +Local) da Coca-Cola: sendo uma marca poderosa no mundo todo, busca, através de algumas estratégias específicas, uma identificação com o público da região. Como exemplo disso, temos a famosa lata azul do refrigerante, que circula durante o Festival de Parintins, no Amazonas, evento este no qual a Coca-Cola patrocina, podendo assim ser mais aceita pelo público que torce para o Boi Caprichoso, de cor azul, rival do Boi Garantido, de cor vermelha.

Harmonia só ocorre entre elementos diferentes. Um instrumento que toca apenas uma nota não produz música

Outro exemplo marcante vem da China, na adaptação do nome da marca naquele país. De forma a tentar manter a sonoridade do nome, e tendo em vista a dificuldade que a língua chinesa traria na pronúncia do “Coca-Cola”, foi realizado um interessante trabalho de naming para encontrar-se um equivalente fonético do nome original. O resultado é que para se pedir uma Coca- Cola em chinês você deve falar que quer uma “ko-kou-ko-le”, que significa algo próximo a “felicidade na boca”. (Ouça a pronúncia aqui, é divertido.)

E como a nova propaganda é Glocal?

Já não é novidade as estratégias que a Coca-Cola elabora em suas campanhas para associar sua marca a valores específicos de alta aceitação: família, felicidade, harmonia, amor. Mas como fazê-lo no seu país de origem durante um dos eventos que mais patrióticos do ano e, se possível, causa impacto?

A solução, ao meu ver, foi muito interessante. Ao invés de partir da ideia dos EUA como um país unificado e homogêneo, com bandeira estrelada tremulando ao fundo e modelos maravilhosos de queixo quadrado e figuras esguias (uma clara distorção do padrão físico norte- americano – basta viajar para lá e ver com os próprios olhos como são as tais “pessoas comuns”), partiu-se da ideia dos EUA como um país diversificado, heterogêneo, formado por imigrantes e para imigrantes.

Quem conhece a história das propagandas da Coca sabe que essa proposta não é exatamente uma novidade, mesmo nos EUA. Em 1971, a dupla Harvey Gabor e Bill Baker, duas lendas da publicidade estadunidense, criaram a peça “Hilltop” (“Topo da Colina”), na qual pessoas de várias etnias seguravam suas Coca-Colas na mão, cantarolando versos como “Eu gostaria de ensinar o mundo a cantar em perfeita harmonia; Eu gostaria de comprar uma Coca para o mundo e fazê-lo companhia – that’s the real thing”.

?(Nota: recomendo que confiram o Project Re:Brief, idealizado pelo Google, no qual a dupla Gabor e Baker se reuniu novamente em 2012 para refazer a campanha, utilizando o mesmo conceito, mas com as possibilidades que tecnologias atuais, especialmente a internet, oferecem)

Coca-Cola

O interessante desta propaganda da Coca-Cola então está na sua ousadia de ir contra a maré de clichês patriotas. Ao invés de símbolos visuais já estabelecidos e facilmente identificáveis como nos exemplos anteriores, a propaganda da Coca-Cola apostou nos valores de união pela diferença, apostando que a diversidade pode, sim, ser sinônimo de felicidade e harmonia. Faz sentido: harmonia só ocorre entre elementos diferentes. Um instrumento que toca apenas uma nota não produz música. Ou até produz, mas ela será chatíssima.

É então Glocal sim, no seu próprio país de origem, apostando na ideia já esquecida por muitos americanos que eles são um país que devem muito à imigração. As reações pelas redes sociais são claras desse esquecimento. Contudo, se você ainda não se convenceu que, mesmo sendo fórmula antiga, a Coca foi contra o clichê, vejamos algumas comparações com outros comerciais que saíram na mesma noite.

PatriotismoS

É uma proposta ousada, especialmente quando comparada com as estratégias de outras propagandas que utilizaram o tema do patriotismo em seus conceitos. Pelo ranking divulgado pelo AdMeter, já comentado em outro post aqui no B9, vemos que as três primeiras propagandas de mais alto escore usaram temas patrióticos – alguns mais sutis, outros nem tanto.

Peguemos a propaganda com mais alto índice de sucesso (8.29, de 0-10), a peça “Puppy Love”, da Budweiser. Nela, temos música country, fazendeiro (texano?), e a incansável história da amizade verdadeira – dessa vez, entre um cachorro, um (uns) cavalo(s) e seu dono. Este, aliás, é obviamente branco, queixo quadrado, tem todos os dentes, e uma esposa magra, branca, e loira. Loiríssima. O dia que eu ver um casal de fazendeiros estadunidenses desse jeito, eu “tiro meu chapéu”. (mas ok, eu gostei da propaganda, não tenho coração de pedra)

America

A segunda propaganda no ranking é a “Cowboy Kid”, da Doritos. Nele, temos outros elementos tipicamente americanos: casa de subúrbio, mãe voltando das compras, a SUV, e os filhos brincando de cowboy. E, afinal, o que é mais americano que uma criança branca, loira, brincando de cowboy, enlaçando seu irmão, também loiro, todos felizes correndo pelo gramado verde sem grades no subúrbio? Estereótipo atrás de estereótipo. (ok, eu também achei divertidinha, mas pô, né?!)
??
?A terceira propaganda no ranking é, neste cenário, a mais emblemática: outra da Budweiser, chamada “A Hero’s Welcome” (“A recepção do Herói”), utilizando o velho recurso do soldado que volta da guerra para seu lar. Não, ele não estava em uma guerra (guerra?) sem sentido. Não, ele não estava sofrendo as consequências de uma administração desastrosa como foi a do governo Bush. Ele é um herói.

É, na minha opinião, a propaganda mais fraca. Pura apelação emocional a um assunto que ainda é difícil de se lidar para muitos americanos. O vídeo é pura emoção barata: a esposa (branca, loira, magra todos os dentes branquíssimos etc.) que o recebe, a SUV, a cidade pequena acolhedora, os cartazes nas cores da bandeira, o desfile etc. Ao final do vídeo, lemos os dizeres “Todo soldado merece uma recepção de herói”. Em seguida, vem a sugestão de hastag “Salute a Hero”.

Claro, a Budweiser é famosa em suas propagandas no passado por apelar para esse patriotismo militar. Você lembram dessa, de 2006, na qual os soldados retornantes eram aplaudidos no aeroporto?

(cabe a menção de dois comentários que li nesse vídeo. Um usuário disse: “isso é errado em tantos níveis que acho que ficarei doente”. Prontamente, outro usuário responde: “vá ficar doente em outro país então”.)

Honestamente, eu não sei dizer o que é mais bizarro nesse tipo de campanha: seria o fato de muitos americanos ainda apoiarem as manobras militares americanas, mesmo após o desastre que foi a administração Bush (afinal, se não houvesse aceitação, a Budweiser já teria mudado sua estratégia)? Ou seria a tentativa de relacionar o arquétipo do “Herói”, personificado na figura do soldado, ao cidadão comum que só quer ficar em casa e tomar cerveja vendo TV? Ou seria a curiosidade (pelo jeito desconhecida por muitos americanos) de que Budweiser é agora uma marca brasileira, já que a Ambev a comprou em 2008?

Cabe a menção de que, de acordo com o AdMeter, a propaganda “It’s Beautiful” da Coca- Cola ficou em 17º lugar, com um escore de 6.06. Já em outro ranking, o do BrandMagz, também já comentado aqui no B9, algumas posições mudam. O vídeo da Coca passa a 3ª posição, ficando atrás apenas do “Puppy Love” (Budweiser, que leva neste caso os dois troféus) e do trailer dos “Transformers: Age of Extinction” (que, né?).

America

Por que essas diferenças?

Primeiro, temos que lembrar dos métodos adotados para cada análise. O AdMeter, mantido pelo jornal USA Today, define seus escores baseados em notas dadas por milhares de pessoas participantes de focus groups, durante a transmissão do Super Bowl. Assim que assistem a um comercial, eles dão suas notas, que podem ir de 0 a 10. Podemos então assumir que é uma forma de análise de recepção de qualidade da propaganda no cenário offline.

Já a BrandMagz busca acompanhar a quantidade de compartilhamento que cada propaganda recebe em redes sociais. Logo, seu foco é o online, o que informa uma taxa de amostragem muito maior: enquanto o AM lida com alguns milhares, as estatísticas da BM trabalham com centenas de milhares. Comparando os dois rankings, temos um quadro curioso: por um lado, a propaganda “It’s Beautiful” da Coca-Cola teve uma qualidade mediana. Por outro lado, foi muito compartilhada e, provavelmente, bastante discutida.

A língua é um dos primeiros capitais simbólicos que adquirimos. Com ela, demarcamos nosso lugar e nosso país

Chama também a atenção o caso do trailer dos “Transformers: Age of Extinction”. Enquanto ele ficou rankeado em 2º lugar na BM, sendo computados mais de 180 mil compartilhamentos, no AM ele tirou a ínfima nota de 4.61. Talvez, isso pode ser um indicativo de que, no fim das contas, por mais precisas que as estatísticas tentam ser, os dois núcleos de pesquisa estão trabalhando com públicos diferentes.

Nessas horas, é bom lembrarmos o velho ditado popular: qualidade não é exatamente quantidade. Sendo assim, milhões de pessoas podem ter compartilhado o vídeo da Coca simplesmente para xingarem muito no Twitter. Ou Facebook. Ou Google Plus. Enfim, vocês entenderam a ideia. E, claro, o mesmo vale para o filme dos Transformers. Afinal, quem realmente acha que foi uma boa ideia botar o Mark Wahlberg no meio de robôs gigantes?

Mas já que estamos surfando na onda dos clichês, vamos também lembrar que tem gente que acredita que “não existe má propaganda”. Neste caso, talvez “qualidade” e “quantidade” se misturem. Causou-se um buzz, ao menos em terras norte-americanas, e isso é indiscutível. Mas o que ele nos diz?

Publicidade como política

Voltando ao caso da Coca-Cola. É inegável que os comentários selecionados pelo tumblr Public Shaming assustam – assim como alguns comentários no YouTube. Se vocês duvidam, vejam esse comentário que acabou de aparecer no vídeo, enquanto escrevo esse texto (o comentário foi postado há 14 minutos). Na tradução, tentei manter as maiúsculas originais do texto do autor, assim como sua pontuação “de primeiro mundo” (só corrigi alguns erros de escrita, porque paciência tem limites):

“PARA TODOS OS LIBERAIS AMANTES DE Obama POR AÍ… Obama É NOSSO INIMIGO, ELE FOI CRIADO COMO UM COMUNISTA/MUÇULMANO… ELE FOI ENSINADO DESDE A INFÂNCIA A ODIAR A AMÉRICA E TUDO O QUE ELA REPRESENTA, AMBOS SEUS PAIS FORAM COMUNISTAS DEVOTOS. SEU OBJETIVO É DESTRUIR ESTE PAÍS E ATÉ O MOMENTO ELE ESTÁ CONSEGUINDO. ANTES DE SER ELEITO SEUS MELHORES AMIGOS ERAM TERRORISTAS CONHECIDOS E RACISTAS COMO BILL AYERS (TERRORISTA) AL SHARPTON (RACISTA, MENTIROSO, INTOLERANTE, PREGADOR MUÇULMANO CONTRA A AMÉRICA). OBAMA DECLAROU, ELE VAI FICAR AO LADO DOS MUÇULMANOS ATÉ O AMARGO FIM. ELE ESTÁ DO LADO DO NOSSO INIMIGO, UM TRAIDOR, ELE É UM MEMBRO DE UMA IRMANDADE MUÇULMANA UMA ORGANIZAÇÃO TERRORISTA QUE ELE APOIA TANTO FINANCEIRAMENTE (COM DINHEIRO DOS CONTRIBUINTES) E COM ARMAS (F-16s, CAMINHÕES, ARMAS, DINHEIRO) TUDO PARA SER USADO PARA MATAR AMERICANOS. O MAIOR INIMIGO QUE NÓS ENFRENTAMOS ESTÁ NA CASA BRANCA… ELE DEVE SER PARADO, ELE É O INIMIGO. ACORDE AMÉRICA, PARE DE PROTEGER ESTE TIRANO”

Sim, eu sei, eu fiz a besteira de “ler os comentários”, um dos maiores pecados da internet. Ainda assim, isso diz algo. Este comentário selecionado não é o único: há vários usuários comentando ora seu apoio à mensagem da propaganda, ora seu desprezo. Se fosse para chutar, eu diria que a maior “ofensa” para esses estadunidenses que se enfezaram com a propaganda foi o trecho cantado em árabe. Talvez, se essa parte fosse tirada e cantada, sei lá, em português, não haveria tanto ódio. Não digo que não haveria, mas seria menos.

?Devemos entender aqui que, para o americano que foi lá e xingou muito no twitter, o fato de terem cantado uma das músicas mais patriotas do seu país em outras línguas, houve realmente um sentimento legítimo de agressão simbólica. Sendo uma delas o árabe, o impacto foi mais agressivo. Em outros tempos, teria sido cantar em alemão. Em outros, em russo. E por aí vai.

Quem sabe uma consciência política não seja a solução plausível para a onda infindável de clichês que nos invadem todos os dias?

A língua é um dos primeiros capitais simbólicos que adquirimos. Com ela, demarcamos nosso lugar e nosso país. Os sotaques, trejeitos, gírias e semânticas demarcam nossos locais de origem – que podemos ter orgulho ou não. Contudo, o centro da discussão está numa certa miopia social do próprio americano sobre seu país. Ideias confusas sobre o que é (ou deve ser) um estado democrático e quem tem maior capital simbólico que o outro.

Vale aqui uma adaptação da máxima de George Orwell, em “A Revolução dos Bichos”: todos são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Com a reprodução dos estereótipos que os meios de comunicação de massa americanos insistem em realizar (como no caso das propagandas da Budweiser) e transmitir para o resto do mundo, especialmente para eles mesmos, não é difícil de concluir que a mensagem passada é: “o mínimo para ser americano é falar inglês”. Ser branco heterossexual ajuda. Num país formado historicamente por imigrantes, e que deve muito a eles, uns são realmente mais iguais do que os outros.

É essa a mensagem que, ingenuamente ou não, foi passada nas principais propagandas do Super Bowl. Qualquer coisa que fuja desta norma recebe resistências – e não são brandas, como pudemos verificar. Aí está o ponto de diferenciação e ousadia da campanha da Coca-Cola. Algo tão naturalizado, quanto a necessidade de se falar o inglês para ser americano, foi questionado. Para enfatizar o questionamento, a música cantada era um dos maiores símbolos de patriotismo. Neste ponto, a campanha é conceitualmente brilhante.

America

Às vezes, gostamos de nos enganar achando que estamos num mundo globalizado e que o preconceito está diminuindo. Ações publicitárias assim servem de termômetro para vermos que a coisa não está exatamente como gostaríamos que estivessem. É como uma publicidade com atuação social reversa: ao invés de acreditar cegamente no poder transformador que uma mensagem no meio de massa pode ter, talvez seja mais interessante analisarmos as suas formas de recepção e repercussão – como um espelho bem grande que podemos jogar sobre nós mesmos de tempos em tempos.

Gostamos de nos enganar achando que estamos num mundo globalizado e que o preconceito está diminuindo

Cabe a nós, criativos, produtores de conteúdo, ou “meros consumidores” sabermos olhar para esse tipo de repercussão como uma forma de atuação política, e sabermos nos posicionarmos contra ou a favor. Podemos apostar no clichê patriota (e as inúmeras campanhas pró-Brasil em tempos de Copa chegando são exemplos disso), mas podemos às vezes incitar o debate.
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Não quero também dizer com isso a Coca-Cola é boazinha. Para mim, continua sendo um refrigerante que já me deu duas pedras no rim e que, ainda assim, não consigo parar de tomar. Contudo, espero, sinceramente, que mais campanhas com esse potencial social surjam no futuro, para que possamos cada vez mais ter consciência do potencial político da publicidade – mesmo em peças aparentemente “banais”, como de um salgadinho, de um refrigerante ou de uma cerveja (aliás, notaram se mudaram as propagandas de cerveja no Brasil, de 10 anos para cá?).

Quem sabe uma consciência política não seja a solução plausível para a onda infindável de clichês que nos invadem todos os dias? Ideologias acerca do papel social da mulher, do homem, dos negros, dos estrangeiros, dos gays, dos heteros, tudo isso permeia os produtos dos meios de comunicação de massa. Restam aos clientes e comunicadores decidirem o que fazer com isso. E, principalmente, como fazer.

Brainstorm9Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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